Sotaques do Brasil: Como a Geografia Molda Nosso Jeito de Falar - Artigo
Artigo
O Brasil é um país continental formado por gente de tudo que é continente: nativos indoamericanos, escravos africanos, imigrantes europeus. Essa variedade étnica moldou nossa história, e nosso jeito de contá-la. O idioma luso se transformou conforme os povos se misturavam ou se isolavam ao ocupar o território. Novas palavras e fonemas, ritmos mais ou menos cadenciados, originaram verdadeiros dialetos. O português que falamos hoje é o resultado (sempre inacabado) do que foi preservado boca a boca e nos registros de quem detinha o poder, e do que era mais conveniente pronunciar.
Nossos sotaques intrigam os linguistas desde o princípio, em que o verbo estava com Cabral. Para mapeá-los, dezenas deles trabalharam quase duas décadas na criação do Atlas Linguístico do Brasil – obra na qual a SUPER mergulhou para contar a história desses sotaques. Todos dizendo a mesma coisa, mas com um jeitinho brasileiro diferente – como você acompanha a seguir.
Em 1576, Pero de Magalhães Gândavo enviou uma carta para Portugal narrando como os habitantes da então Terra de Santa Cruz se comunicavam: “A língua de que usam, por toda a costa, carece de três letras”… “não se acha nela F, nem L, nem R”… “porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei”. O que o cronista não sabia era que, séculos depois, os indígenas seriam obrigados a aprender essas três letras e inventariam uma pronúncia do R exclusiva entre os falantes de português.
Quando os portugueses aqui chegaram, havia mais de 1.200 idiomas indígenas. Esse encontro boca a boca entre os lusos e os nativos deixou marcas. A dificuldade dos índios para pronunciar o R dos colonizadores deu origem ao que chamamos de R caipira (ou “retroflexo”, para os linguistas). A pronúncia de porrrta, porrrteira, não existe em Portugal. É uma jabuticaba linguística cultivada no interior de São Paulo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná e Santa Catarina – Estados que fizeram parrrte do perrrcurrrso dos bandeirantes paulistas.
A fala brasileira preserva sinais desse choque de cultura. Até hoje, há quem troque o L pelo R, como em farta (falta), frecha (flecha) e firme (filme). E isso é coisa antiga: em 1807, o soldado Manoel Coelho seduziu a filha de um fazendeiro, que o obrigou a se casar. Coelho escreveu em uma carta que não casaria “nem por bem nem por mar”.
Esse uso do R gerava, e ainda gera, discriminação. Em 1823, numa discussão parlamentar sobre onde seria construída a primeira faculdade do Brasil – a de Direito do Largo São Francisco –, alguns políticos, como o deputado baiano José da Silva Lisboa, queriam vetar São Paulo por causa da forrrma de falarrr: “Nas províncias há dialetos com seus particulares defeitos, é reconhecido que o de São Paulo é o mais notável”, discursou.
Quando a capital paulista abriu as porrrtas para os imigrantes, a pronúncia começou a mudar. Entre o fim do século 19 e o início do século 20, mais de 1,5 milhão de italianos chegaram em Sampa, nada entenderam da dura poesia concreta, mas construíram o sotaque paulistano. Porrrta virou algo como “porita” com um R seco, que faz a língua vibrar atrás dos dentes e, em casos exagerados, até os multiplica. Carro pode virar caRRRo, se o falante for da Mooca, do Brás ou do Bixiga, bairros paulistanos de forte influência italiana. Gaúchos e moradores de regiões paranaenses e catarinenses colonizadas por italianos também falam esse R vibrante.
Não muito longe da Pauliceia, outro jeitinho brasileiro de usar o R teve vida mais fácil para se legitimar. Em 1808, o Rio de Janeiro tinha 23 mil habitantes. Quando Dom João 6º desembarcou por lá, trouxe uma tripulação de 15 mil patrícios que definiram o sotaque local. À época, era moda na corte portuguesa pronunciar o R como se saísse do fundo da garganta, à la française, como em roquêfoRRRt e PáRRRi. Percebendo como a nobreza ostentava a consoante, a elite carioca imitou. Foi assim, na contramão do R caipira e 100% brasileiro, que os habitués das oRRRlas mais famosas do Brasil escolheram o R importado da França pelos portugueses.
AntIsh da coRRRte sair do caish de Lishboa, o Rio de Janeiro não era sinônimo de chiado. Assim como aconteceu com a pronúncia do R, a comitiva que veio com a Coroa portuguesa alastrou o S com som de SH que, em contato com os inúmeros dialetos africanos dos escravos, ganhou ainda mais força. Existem registros que comprovam que o português culto dos séculos 16 e 17 já reproduzia o fonema dessa forma. Hoje, o Rio é onde mais se chia no Brasil: 97% dos cariocas chiam no meio das palavras e 94%, no final. Faça o teste: peça para um carioca falar “esqueci o isqueiro na esquina da escola”.
Belém do Pará ocupa o segundo lugar no ranking e Florianópolis fica em terceiro. A distância entre as cidades que estão no pódio dos chiadores prova que a formação histórico-cultural é mais importante para definir a variação dos sotaques do que a localização geográfica. Colonizadas depois do Nordeste e do Sudeste do País, as regiões Norte e Sul receberam, a partir do século 17, imigrantes da Ilha dos Açores e da Ilha da Madeira, onde é comum que o S assuma o som de SH. Em 1929, 15,6 mil portugueses viviam no Pará, a quarta maior população portuguesa do Brasil à época. “Se quesh quesh, se não quesh dish” é um famoso bordão de Florianópolis. Se um belenense visitar a capital catarinense, é mais provável que ele entenda que a frase significa “se queres queres, se não queres diz” do que um vizinho estadual, gaúcho ou paranaense, sem o chiado no repertório.
Outras cidades, entretanto, também receberam levas de açorianos e madeirenses sem que eles impusessem o S chiado – Porto Alegre foi uma delas. Elisa Battisti, do Instituto de Letras da UFRGS, explica que a posição geográfica e o tamanho da população de Florianópolis e Belém foram propícios para perpetuar a forma de falar dosh portuguesesh ilhéush. “Quando os açorianos chegaram a Florianópolis, o número de habitantes era pequeno, e houve um isolamento geográfico importante até o século 20. Já Porto Alegre era mais populosa, misturava indígenas, portugueses, espanhóis e, depois, recebeu alemães e italianos. Esses contatos todos foram dando corpo ao sotaque portoalegrense, sem chiamento.”
Enquanto alguns ficaram ilhados no próprio sotaque, outros precisaram aprender a se comunicar com diferentes povos. Lar de indígenas, garimpeiros portugueses, escravos e outras pessoas que iam e vinham na rota dos tropeiros, Curitiba transformou-se em um intenso polo de atração de imigrantes a partir do século 19 – sobretudo italianos, ucranianos e poloneses.
A falta de vogais nos idiomas destes dois últimos povos acabou estimulando uma pronúncia mais pausada de letras como o “E” para que entendessem e se fizessem entender. O folclórico “leitE quentE” curitibano surgiu assim.
Variações nas pronúncias de vogais após T e D, aliás, também contribuem para a diversidade do português brasileiro: em Pernambuco, na Paraíba e no Rio Grande do Norte, a língua vai atrás dos dentes para falar o T e o D – assim, o djia vira Día e tchio, Tío.
O idioma que os portugueses trouxeram para o Brasil a partir do século 16 é muito distinto do que se fala além-mar hoje. Após mais de 500 anos de história, de imigrações, de mistura e de isolamento étnico-cultural, pouco restou do português lusitano arcaico.
No entanto, alguns lugares preservaram traços do sotaque de Cabral. Em Cuiabá e em outras cidades do interior do Mato Grosso, não é incomum ouvir os moradores falando de um djeito DíferentE. Os lusos que exploraram a região no século 17 em busca de ouro vinham do norte de Portugal e inseriam T antes do CH e D antes do J. E até hodje os cuiabanos tchamam feijão de fedjão.
Usar vogais abertas ou fechadas é uma diferença fonética marcante entre quem vive mais ao Norte e mais ao Sul do Brasil. A explicação do fenômeno divide opiniões. Alguns pesquisadores defendem que as vogais fechadas são herança natural de quando o português ainda estava se ramificando do latim. Então, as vogais fechadas faladas no Sul, Sudeste e Centro-Oeste remeteriam ao jeito mais antigo de falar português. Outros linguistas jogam as vogais abertas do Nordeste e do Norte na conta da chegada dos portugueses ao Brasil: a fala lusa nos séculos 16 e 17 era cheia de “és” e “ós”. Na maior parte do Nordeste, a sonoridade pegou, e jamais largou.
Outras marcas de sotaque envolvendo vogais vieram da África, junto com os 800 mil escravos que aportaram no Brasil até o século 17. A chegada desses imigrantes involuntários espalhou palavras africanas pelo País e influenciou nossa maneira de falar o vocabulário que já existia aqui. Comer o R no final das palavras (Salvadô, amô, calô) e a supressão de vogais em ditongos (lavôra, chêro, bêjo, pôco), por exemplo, aparecem frequentemente em dialetos africanos.
A falta de plurais, o uso do gerúndio sem falar o D (andano, fazeno), a ligação de fonemas em som de z (ozóio, foi simbora) e a simplificação da terceira pessoa do plural (disséro, cantaro) também são heranças africanas. Em algumas delas, inclusive, os linguistas cogitam que se espalharam com força simplesmente por serem mais fáceis de falar.
As influências históricas dizem muito sobre a formação de nossos sotaques, mas não explicam tudo. Algumas pronúncias variam de acordo com o nível de escolaridade, a classe social e até a velocidade da fala. Acrescentar vogais como em arroiz, trêis, nóis, é um exemplo de fenômeno sem origem histórica bem definida.
A ditongação, que é como os linguistas denominam esse processo, evoluiu ao longo de gerações e se espalhou pelo Brasil poupando algumas regiões de Minas Gerais e do Sul. Daí veio, aliás, o costume de dizermos “meia” em ve(i)z de seis: não confundi-lo com trê(i)s. Carregar um sotaque também é assim: viver trocando seis por meia dúzia. No fundo, não existe português “certo” ou “errado” nessa história. As línguas são como as formas de vida: evoluem. E os sotaques acompanham essa eterna mutação.
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