Pinacoteca Vaticana Vaticano
OST - 300x203 - 1603-1604
O Sepultamento de Cristo, chamada também de A Deposição de Cristo, é uma das peças-de-altar mais
admiradas de Caravaggio e foi pintada
em 1603-4 para a segunda capela da direita em Santa
Maria in Vallicella (a Chiesa
Nuova), uma igreja construída para o Oratório
de São Filipe Néri. Atualmente uma cópia da pintura decora a capela e a
original está na Pinacoteca
Vaticana. A pintura foi copiada por artistas tão diversos quanto Rubens, Fragonard, Géricault e Cézanne. Ela retrata uma cena do sepultamento
de Jesus.
Em 11 de julho de 1575, o papa Gregório XIII (r.
1572–1585) emitiu uma bula confirmando a formação de uma
nova sociedade — o Oratório de São Filipe Néri — e concedeu-lhe a igreja
de Santa Maria in Vallicella.
Dois meses depois, a reconstrução da igreja começou. Planejada na reconstrução
desta Chiesa Nuova ("igreja
nova"), como ela ficou conhecida, estava a dedicação de todos aos
mistérios da Virgem. Começando no braço esquerdo do transepto e continuando pelas cinco capelas de cada um
dos lados da nave até o braço
direito, os altares foram dedicados a Apresentação ao Templo, Anunciação, Visitação, Natividade, Adoração dos Pastores, Circuncisão, Crucificação, a Pietà, Ressurreição, Ascensão, Vinda do Espírito Santo, Assunção e a Coroação.
O "Sepultamento" foi provavelmente
planejado nesta época e o trabalho começou em 1602/3. A capela onde a tela
seria pendurada era a dedicada à Pietà e
foi patrocinada por Pietro Vittrice,
um amigo de Gregório XIII e seguidor de São Filipe Néri. Esta
capela ocupa uma posição privilegiada na Chiesa Nuova: a missa podia
ser celebrada ali e a visita concedia indulgências especiais.
Localizada no lado direito da nave, ela foi
concedida a Vittrice em junho de 1577 e a fundação da capela, ratificada em
setembro de 1580. Algum tempo depois de sua morte, em março de 1600, um legado
de 1 000 scudi foi
deixado à disposição para a manutenção da capela e ela foi construída em 1602,
a data que é considerada a mais antiga para a encomenda da pintura a Caravaggio. De
fato, a capela foi descrita, em 1 de setembro de 1604, como "nova" em
um documento que relata que ela teria sido paga por Girolamo
Vittrice, sobrinho e herdeiro de Pietro.
Girolamo Vittrice tinha uma ligação direta
com Caravaggio: em agosto de 1586, ele se casou com Orinzia di Lucio Orsi, irmã
do amigo de Caravaggio, Prospero Orsi, e
sobrinha do humanista Aurelio Orsi. Este,
por sua vez, havia sido mentor do jovem Maffeo Barberini, que seria eleito papa Urbano VIII em 1623. Foi por estas ligações que o
filho de Girolamo, Alessandro,
tornou-se bispo de Alatri em
1632 e conseguiu presentear o papa Inocêncio X Pamphilj com a "A Adivinha"
(atualmente no Louvre), de Caravaggio, depois de ser nomeado governador de Roma em 1647.
A pintura foi universalmente admirada e
comentada por críticos como Giulio Mancini, Giovanni Baglione (1642), Gian Pietro Bellori (1672)
e Francesco
Scanelli (1657).
A pintura foi levada para Paris em 1797 para o Musée Napoléon,
devolvida a Roma e instalada no Vaticano em 1816. A pintura que atualmente decora o seu
lugar na Chiesa Nuova é
uma cópia de Michelle Koeck.
Esta pintura da época da Contra Reforma — com uma cascata diagonal de pranteadores
e carregadores descendente até o flácido corpo morto de Cristo nu em cima de
uma pedra lisa — não é um momento de transfiguração, mas de lamento. Conforme
os olhos do público vai descendo a partir do brilho, há também um movimento de
descida a partir da histeria de Maria de Cleófas passando
pelas emoções contidas sobre a morte como o silenciamento emocional final. Ao
contrário do sanguinolento Jesus pós-crucificação frequente nas mórbidas telas espanholas, os Cristos da arte italiana geralmente morrem sem sangue e seu corpo se
posiciona de uma forma desafiadora. Como se enfatizasse a incapacidade do
Cristo morto de sentir dor, uma mão penetra na ferida no seu flanco. Seu corpo
está representando como o musculoso, cheio de veias e de membros grossos corpo
de um trabalhador ao invés do usual corpo esguio.
Dois homens estão carregando o corpo. João Evangelista,
identificado apenas por sua aparência juvenil e seu manto vermelho, segura o
Cristo morto sobre seu joelho direito e com seu braço direito, inadvertidamente
abrindo-lhe a ferida. Nicodemos agarra-lhe os joelhos com
seus pés plantados na beira da laje. Caravaggio balanceou a posição estável,
digna, do corpo com os esforços instáveis de seus carregadores.
Enquanto as faces são importantes para todas
as pinturas, nas obras de Caravaggio é sempre importante notar para onde os
braços estão apontando. Para o céu na "Conversão no
Caminho para Damasco", para Levi no "Chamado de São Mateus".
Aqui, o braço caído do Deus morto e seu manto imaculado tocam as pedras; a
chorosa Maria de Cleófas gesticula
para o céu. Esta seria uma interpretação da mensagem de Cristo: Deus veio à
terra e humanidade se reconciliou com o céu. Como sempre, mesmo em suas obras
de maior devoção, Caravaggio jamais deixa de lado suas convicções. No centro
está Maria Madalena, secando as
lágrimas com um lenço branco, com a face encoberta pelas sombras. Segundo a
tradição, a Virgem Maria é geralmente
representada como eternamente jovem, mas aqui, Caravaggio a pinta como uma
senhora de idade. A figura da Virgem está também parcialmente encoberta por
João; podemos vê-la vestida com o hábito de uma freira e seus braços estão abertos para os lados,
imitando a linha da laje de pedra sobre a qual o grupo está. Sua mão direita
paira acima da cabeça de Jesus como se ela estivesse se esticando para tocá-lo.
Vistas em conjunto, as três mulheres constituem três diferentes expressões
complementares do sofrimento.
A figura da direita imita os traje da "Madalena Penitente"
(Galeria Doria Pamphilj, Roma),
de Caravaggio; a da esquerda lembra sua Maria em "Conversão da
Madalena" (Detroit Institute
of Art). Andrew
Graham-Dixon afirma que estas figuras foram posadas por Fillide Melandroni, uma modelo frequente em suas obras e que
tinha cerca de 22 anos de idade na época.
A composição de Caravaggio também parece ter
relação com a "Pietà" na Basílica de São Pedro,
de Michelangelo, especialmente a figura
da Madona e com a "Pietà Florentina" (Museo dell'Opera del Duomo,
Florença), também de Michelangelo, principalmente a figura de Nicodemos. Neste
caso, Caravaggio também transpõe nele o auto-retrato de Michelangelo.
Caravaggio também estabelece uma comparação
com Rafael ao utilizar como fonte para o
grupo principal a "Deposição Borghese". Esta
comparação contrasta o idealismo do Alto Renascimento com naturalismo do próprio Caravaggio.
A pintura de Caravaggio é um contraponto
visual para a missa, com padre erguendo a hóstia recém-consagrada tendo o "Sepultamento" atrás
de si. O local privilegiado do altar deve ter significado que esta era uma
ocorrência diária; o ato justapondo perfeitamente o corpo na tela com a hóstia
erguida no momento que o padre diz "Este
é o meu corpo". A Deposição (c. 1525-8), de Jacopo Pontormo, em Florença, tem uma função similar e fica numa disposição
similar sobre seu altar. Estas pinturas são representações do Corpus Domini e não apenas lembranças da deposição para
o sepultamento de Cristo.
A partir do século XVII, a tela de Caravaggio
passou a ser interpretada como uma cena do próprio sepultamento. Esta
interpretação foi baseada na fórmula heroica, derivada de antigas fontes,
de Adônis ou Meleagro: a cabeça atirada para trás e um braço flácido
estirado na lateral. De fato, a "Deposição Borghese", de Rafael, é um outro exemplo desta fórmula. A
colocação do corpo de Cristo numa laje de pedra também tem precedentes na história da arte,
especialmente "Lamentação",
de Roger van der Weyden,
na Galeria Uffizi, em
Florença.
Porém, avaliando com cuidado, a pintura de
Caravaggio não preenche os requisitos desta fórmula, pois estes tipos antigos
são cenas de transporte do corpo enquanto que esta, assim como no caso da
pintura de Van der Weyden, definitivamente não é. Ao invés disto, a composição
revela a tradicional forma piramidal do tipo Pietà. Dada a interpretação da pintura como sendo deste tipo, a
laje de pedra (antes interpretada como a porta do túmulo) pode ser
reinterpretada como uma referência à "Pedra da Unção", hoje abrigada
na Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém, a pedra utilizada para apoiar o corpo de Cristo
quando ele foi ungido e vestido em sua mortalha de linho, como relatado no Evangelho de João.
Raramente percebido pelo público moderno é a
inclusão, por Caravaggio, de uma planta no canto esquerdo da tela. Geralmente
chamada de verbasco, acreditava-se que o Verbascum thapsus tinha
propriedades medicinais e era utilizada para afastar maus espíritos. Ela era
associada com a iconografia de São João Batista. Caravaggio
pintou-a novamente em "São João Batista" e "Descanso na Fuga
para o Egito".
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