Passeio Público, Curitiba, Paraná, Brasil
Curitiba - PR
Fotografia
“Temos um Passeio Público, digno desta adiantada capital”: espaços de sociabilidades em registros fotográficos do acervo do Museu Paranaense. Curitiba. 1913-1930:
Este texto discute a captura, em registros fotográficos da coleção do Museu Paranaense, dos espaços de sociabilidades da cidade de Curitiba nos recortes temporais de 1913 e 1930, tomando as transformações ocorridas no Passeio Público como estudo de caso. A eleição desse espaço para análise retoma dois momentos da cidade de Curitiba: a reforma urbana proposta por Cândido de Abreu em sua gestão a partir de 1913 e aquele em que a Prefeitura Municipal enfrenta um período de adequações devido à falta de recursos destinados às melhorias do equipamento urbano em 1930, imediatamente anterior à grande reforma urbana indicada no Plano Agache (1941). Primeiro foram examinados conceitos relativos à cidade como experiência visual, às sociabilidades, ao cotidiano e ao imaginário urbano, depois as reformas urbanas e as transformações estéticas em Curitiba no período da Belle Époque. Em seguida, circunscrevemos as transformações do espaço do Passeio Público, analisando as fotografias do acervo do Museu. Finalmente, consideramos a circulação de imaginários, imagens e memórias relativas à cidade na constituição do acervo do Museu Paranaense e da Fundação Cultural de Curitiba.
"Diz que o grandioso espetáculo que ora se oferece o numeroso e seleto concurso de povo ali congregado, honrando com sua presença os trabalhos do Passeio Público, era a prova mais solene e característica do sentimento verdadeiramente progressista e civilizador que predomina na culta população paranaense. (Ata de inauguração de obras parciais no Passeio Público, realizada em 8 de agosto de 1886)."
Este texto se propõe a discutir conceitos - sobre cidade, sociabilidades, imagens urbanas e fotografia - que nos proporcionarão guias de análise e de construção de sentido para uma narrativa textual e visual sobre nosso objeto: a cidade de Curitiba e seus espaços de sociabilidades, mais especificamente o Passeio Público e seu registro fotográfico constante no acervo do Museu Paranaense.
Nossa análise abrange a retomada da reforma urbana proposta por Cândido de Abreu em uma de suas gestões a partir de 1913 e o momento em que a Prefeitura Municipal da cidade enfrentou um período de adequações devido à falta de recursos destinados às melhorias do equipamento urbano, em 1930.
Na década de 1920, a cidade reorganiza-se em largas avenidas, ruas são remodeladas, são feitas melhorias nos acessos aos bairros, pavimentação dos logradouros e reformas nas praças, contando ainda com a assessoria de Saturnino de Brito para o planejamento do sistema de saneamento e as demandas decorrentes das enchentes dos rios que cortavam o centro.
A década seguinte, com a decadência da produção ervateira e cafeeira, aliada à falta de recursos, proporcionará a Curitiba um interlúdio nas reformas urbanas até 1941, quando é posto em ação o Plano Agache e as consequentes mudanças urbanas provenientes das apropriações, incorporações ou não realizações das propostas aí indicadas.
O “sentimento verdadeiramente progressista e civilizador”, anunciado no discurso de inauguração parcial do Passeio Público, se encontraria presente, nos anos finais do século XIX e nesse início do século XX, ao desenvolver instituições e espaços culturais, como o Museu de Curitiba (Museu Paranaense), as bibliotecas, o arquivo público, teatros e escolas em uma tentativa do territorio do Paraná em projetar-se no cenário político e intelectual do país. Em Curitiba, o já citado engenheiro Cândido Ferreira de Abreu, prefeito de 1913 a 1916, realizou intensas melhorias na capital, pavimentando ruas e ajardinando praças, atribuindo nova configuração à urbe e, assim, prenunciando os ventos modernos que sopravam nas cidades, especialmente nas capitais.
Nossas fontes são os registros fotográficos do acervo do Museu Paranaense, instituição na qual se encontra a memória, a história e a constituição de uma identidade sobre o Paraná, seu território, seus fazeres e saberes de sua gente, suas cidades e regiões ao longo do final do século XIX e meados do século XX, como afirma Carneiro Júnior:
(...) os museus históricos e científicos buscam nos seus objetos significados de tempos passados, na tentativa de recriar ou apenas entender cenas sociais mais ou menos remotas. Assim, um conjunto de peças como pontas de flechas, ossos e restos de cerâmica, frutos de pesquisa num sítio arqueológico, pode indicar práticas sociais, religiosas e aspectos da vida material de um povo já há muito esquecido, mas, também objetos de uso pessoal de décadas anteriores, quadros, documentos, fotos de famílias antigas podem também revelar muito da vida de uma população, seja por sua existência, seja pelas ausências de outros objetos guardados.
A instituição foi criada em 1876 pelo desembargador paranaense Agostinho Ermelino de Leão e pelo médico baiano, José Candido da Silva Murici. Denominado como Museu de Curitiba (seu primeiro nome, cuja proposta reporta ao ano de 1874), foi idealizado como um jardim de aclimação (um misto de jardim botânico e zoológico) e local para guarda e exposição de objetos retornados das grandes feiras nacionais e internacionais (comuns nesse período), das quais o Paraná participava, bem como outros materiais doados pelas famílias ou pelo estado.
O primeiro inventário possuía pouco mais de 600 objetos, doados pelas famílias tradicionais, bem instaladas do Paraná. Entre eles, objetos de uso pessoal, quadros, armas, material indígena dos diversos grupos da região, inclusive do tipo arqueológico, medalhas e moedas. Era, então, o primeiro museu no Paraná e o terceiro no Brasil.
A presença do Museu Paranaense foi concebida como instituição capaz de realizar a integração dos diferentes tempos e espaços propostos. Do ponto de vista temporal, o Museu Paranaense expressará a história do Paraná, da pré-história ao tempo presente. Do ponto de vista espacial, compreende a ocupação, a constituição e a integração do território e da população paranaense.
O Setor de História é responsável pela gestão do acervo mais variado do Museu, composto por documentos manuscritos e impressos, mapas, fotografias, desenhos, pinturas e esculturas, ferramentas, equipamentos, mobiliário, porcelana, vestuário e acessórios, armas, moedas, cédulas, fichas, condecorações e selos. Desde 2011, o setor vem desenvolvendo o levantamento, revisão, organização, informatização e pesquisa desse acervo com o objetivo de disponibilizar e dar visibilidade aos pesquisadores e visitantes, bem como estimular a pesquisa e a produção de trabalhos científicos.
As fotografias aqui apresentadas e utilizadas como documentos, inéditas em sua maioria, foram levantadas junto ao acervo ainda em fase de organização de dados e informatização, portanto suas principais informações estão registradas no livro tombo ou em fichas de arquivo. O livro tombo mais antigo foi organizado em 1943 e encerrado em 1966. Antes da instituição do Livro, temos listagens e relações gerais de seu acervo aferidas em publicações de Agostinho Ermelino de Leão e Romário Martins ou relatórios apresentados ao Presidente da Província, como, por exemplo, o Guia do Museu Paranaense (1900), de Ermelino de Leão (gestões entre 1876-1886 e 1892-1901), com poucas informações técnicas sobre os objetos.
Takatuzi nos dá notícias sobre o registro de entrada de objetos no Museu:
Em 1943, Loureiro Fernandes realiza a abertura dos primeiros Livros Tombo do Museu, contendo informações como: Número sequencial, nome do objeto, data de entrada, observações e doador. Estes Livros Tombo tinham o objetivo de registrar a entrada do objeto, bem como sua baixa e, por muitos anos, foram o principal e exclusivo modo de documentar o acervo na Instituição. Inicialmente, quatro livros foram criados na gestão de Loureiro Fernandes, estes definidos de acordo com a área de conhecimento dos departamentos científicos, dividindo-se em acervos antropológicos e etnológicos, arqueológicos, históricos e biblioteca. Os departamentos técnicos passaram a realizar a gestão do acervo que lhe era específico, seguindo metodologias diferenciadas de incorporação, numeração e tratamento. Em 1965, a diretora Marília Duarte Nunes, implantou um Curso de Museologia no Museu Paranaense com a finalidade de implantar uma nova metodologia da época e “tornar o Museu uma instituição agradável, organizado dentro da técnica mais perfeita”. O registro do acervo histórico, antes feito num único Livro Tombo, foi dividido em 8 categorias tipológicas de acervo, que englobavam: documentos manuscritos, fotografias, cartografia, diapositivos, numismática, negativos, clichês e objetos tridimensionais da História. Os acervos antropológico e arqueológico continuaram com a numeração em seus Livros Tombo específicos.
Em grande parte, tais fotografias não possuem autoria ou constam como pertencentes a acervos doados por famílias ao longo do tempo, o que nos remete a outra encruzilhada, pois os registros dos arquivos obedecem às técnicas de catalogação da época e muitas não possuem informações adicionais pertinentes ou esclarecedoras sobre sua origem, ou detalhes de sua doação.
As mudanças políticas da direção do Museu e as transformações políticas internas de gerenciamento e organização de exposições nos fazem refletir sobre o acervo fotográfico e o potencial documental dessa fonte. Nas atas do Museu Paranaense da década de 1920 e 1930, especialmente nas administrações de Alfredo Romário Martins (1902-1928) e Rubens Assumpção (1928-1930), há informações sobre o prédio e a frequência de visitantes. No relatório de Romário Martins, de 1928, por exemplo, anuncia-se a aquisição, pelo governo do estado, da Colleção Tenius com “inumeros objectos de vários usos, epochas e nacionalidades que estão actualmente sendo devidamente catalogados e classificados”. No relatório entregue em 1931, há um alerta para a necessidade de registro mais detalhado dos doadores, o que infelizmente, não se concretizou.
É interessante observar como algumas informações constantes das Atas complementam-se nos noticiários de jornais ou oferecem outras informações distintas, por exemplo: no relatório dos trabalhos executados em 1931, consta a doação de 1 “autographo do general, marechal de campo Von Hindemburg, no anno de 1895” (sem constar o doador), enquanto nos recortes de periódicos com notícias do Museu de 1902 a 1965, temos a informação, da Gazeta do Povo, de 2 de abril de 1931, na coluna “Objectos offerecidos ao Museu Paranense” que o “autographo do Marechal Hindemburg” foi oferecido pelo Sr. Valter Funck. A partir da década de 1940, essa coluna no jornal deixa de existir e as notícias sobre as atividades desenvolvidas pelo Museu são pontuais. Essa discussão ainda merece um estudo mais aprofundado, que não caberia nos limites deste texto.
Podemos considerar as questões propostas nas reformas urbanas na virada do século XIX para o XX como suportes visuais que incitam o debate acerca das transformações dos espaços, as apropriações e adequações realizadas pelas pessoas e orgãos públicos desses lugares.
A fotografia, em seu nascimento e desenvolvimento, no século XIX e XX, respectivamente, adota diversos procedimentos oriundos da pintura, como o enquadramento do tema, o jogo de claro/escuro, a perspectiva de janela, entre outros. Em sua busca por autonomia, desvinculando-se das técnicas artísticas da pintura, arroga-se como recorte de realidade, já que seu registro é mediado pela máquina e o olho humano. Tal perspectiva, como “espelho”, “reflexo” e “realidade”, foi aceita e vigorou por muito tempo. Hoje nos encontramos em outras fronteiras de debates sobre sua função e fonte documental.
As fotografias necessitam de um tratamento próprio, pois, como matéria do conhecimento histórico, propõe um novo tipo de ver e de dar a ver diversos olhares do/e sobre o mundo moderno. “Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Entre aquele que olha e aquilo que é olhado.”
Como integram um sistema de significação que não pode ser reduzido ao nível das crenças formais e conscientes, elas pertencem também à ordem do simbólico e da linguagem metafórica, já que, em vez de representar, capta “(...) forças, movimentos, intensidades, densidades, visíveis ou não; e não para representar o real, porém para produzir e reproduzir o que é passível de ser visível (não o visível).”
Compreender as particularidades da natureza da linguagem fotográfica significa eleger ferramentas teóricas próprias que abarcam um sistema de símbolos, metáforas e estilos cognitivos que, por sua vez, dialogam com o momento histórico de seu contexto, portador de um olhar criador, desenvolvido, moldado ao seu tempo e espaço, no qual o fotográfico é um estado do olhar e um ato, lugar que promove uma negociação silenciosa da imagem como um produto dado para ser visto (construção do autor) quanto para a leitura do espectador (desconstrução).
Partimos do pressuposto de que as fotografias enquanto documentos nos auxiliam a tomar contato com a cultura de um determinado tempo e lugar e nos instiga a indagar como e por que a memória coletiva organiza visualmente grupos sociais, paisagens e fatos de uma mesma sociedade; como e por que esse imaginário social, criado pela circulação de imagens, reforça certas visões de mundo em outros circuitos, como os educacionais ou midiáticos, por exemplo. Temos também que tomá-las enquanto documentos e registros, anotando a autoria, ano, contexto histórico, técnicas utilizadas, enquadramento, referências internas e externas, acervo e guarda, entre outros dados.
As relações entre fotografia, história e cidades há muito estão interlaçadas. Entre outros trabalhos, não podemos deixar de ressaltar importantes pesquisas realizadas por historiadores que contemplam as relações entre as imagens fotograficas e as construções das imagens e imaginários das cidades estabelecendo, por exemplo, metodologias de análise como as pesquisas empreendidas por Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro de Carvalho, que originaram o livro Fotografia e Cidade, onde as autoras desenvolveram uma metodologia própria para a análise iconográfica e formal das imagens da cidade de São Paulo em álbuns de fotografias produzidos entre 1887-1919 e 1951-1954.
A importância desse estudo, entre outras reflexões, está no fato de construir uma metodologia voltada para a interpretação dos padrões visuais de representação da cidade, remetendo à análise dos modos específicos de tratamento fotográfico do espaço urbano. Entre outras conclusões, as autoras verificaram a (...) incidência de determinados padrões em cada um dos períodos, como a predominância do padrão circulação urbana na virada do século XIX para o XX, relacionada à racionalização do espaço urbano, e o padrão retrato nos anos 1950, relacionado à tipificação do trabalho e à mercantilização do espaço urbano, e ainda a construção da diferenciação/indiferenciação social na metrópole capitalista.
Outro pesquisador cujas reflexões proporcionaram avanços nos estudos das relações entre fotografia e cidade abrindo campo a outras abordagens e perspectivas, como as análises das revistas ilustradas nas primeiras décadas do século XX, é Charles Monteiro, que entre outros estudos, publicou o artigo Fotografia e crônica: a construção de uma visualidade urbana moderna de Porto Alegre nas revistas ilustradas nos anos 1920 destacando o papel da fotografia na constituição de novos significados sociais conferidos ao espaço urbano em transformação:
Nas revistas ilustradas a fotografia ganha um lugar de destaque e ao lado da charge e da publicidade, faz parte da construção de uma nova cultura visual moderna e de uma nova pedagogia do olhar. O espaço urbano se transforma e se moderniza e as práticas sociais são reelaboradas e ganham novos significados sociais gerando um novo imaginário de cidade.
Com tais referências no horizonte estabeleceremos algumas considerações acerca dessa complexa ideia que constitui o termo cidade.
Cidades: sociabilidades, cotidiano e imaginário urbano:
As cidades possibilitam a apreciação das transformações do espaço e da sociedade em uma perspectiva muito peculiar. As fronteiras, reais ou simbólicas, construídas em seu interior e ao longo de determinados espaços e tempos, traduzem as ações de atores sociais e de políticas públicas voltadas para uma tentativa de reorganização dos lugares, da disposição de seus circuitos sociais, culturais e econômicos e sua circulação, dos mercados, os usos e contra usos de suas ruas e traçados, das permanências e mudanças dos locais e marcos, eleitos como patrimônio pelo poder público ou pela população, em uma memória afetiva e repleta de vozes e imagens.
(...) as fronteiras simbólicas se formam e se reconfiguram, seu grau de permeabilidade e fluidez, suas referências de tempo-espaço, sua relação com a formação da paisagem urbana e com a criação de marcos culturais para sujeitos determinados. Eles indagam de que modo, nas palavras de De Certeau, entrecruzam-se no espaço estratégias de hegemonia e táticas transversais, “estórias e antitextos, efeitos de dissimulação e fuga, possibilidades de deslocar-se para outras paisagens.
As designações de centro e periferia, as indicações de locais apropriados ao lazer e ao descanso, as ruas destinadas ao comércio e à prestação de serviços liberais em escritórios e consultórios, sua arquitetura e equipamentos urbanos montam um conjunto de peças em constante transformação, mosaicos de imagens e memórias de transeuntes e visitantes, viajantes estrangeiros ou ali mesmo, do bairro periférico.
As intervenções urbanísticas conotam vertentes tanto para a disciplinarização dos usos que os habitantes fazem da cidade, quanto para as ingerências e demandas do mercado em constante busca por ampliação de oferta de produtos e mercadorias, atração para o consumo e espetacularização dos desejos escondidos em suas propagandas sobre o moderno, o novo e o progresso.
(...) A formulação de Jackson aponta para uma importante tensão que é formadora dos sentidos políticos da experiência urbana: o desafio silencioso que práticas sociais móveis e efêmeras lançam - a partir de suas territorialidades flexíveis - aos sucessivos projetos urbanísticos, que se querem disciplinadores dos usos que os habitantes fazem da cidade.
As intervenções urbanísticas resultam de um complexo processo de negociações onde os vieses ideológicos, as injunções políticas e as ações de especialistas, ou aqueles designados como especialistas pelas instituições competentes, apontam as diretrizes norteadoras de mudanças, muitas vezes embaladas pelo rótulo de “modernidade” e “progresso”, “beleza” e “higiene”. Isso não significa que não haverá conflitos, manipulações, desvios de planos e adequações outras não previstas mediante as reações que envolvem os habitantes, os usuários mais frequentes, os viajantes e as tortuosas ações de políticos diretamente envolvidos.
(...) em todo tipo de intervenções urbanísticas (nos monumentos, em edificações patrimoniais, em parques, em amplas áreas urbanas e mesmo em novas edificações), que, longe de ter sido abandonada como algo que já não tem sentido para os valores e estilo de vida contemporâneos, a cidade ressurge refigurada e estetizada pelo mercado - e para ele -, tendendo a ostentar o que se poderia chamar imagens cenográficas de lugar.
Tais alterações estéticas provocam transformações das estruturas físicas na reconfiguração de territorialidades no espaço público e introduzem novos e outros constructos identificadores, reorganizam o ir e vir, definem processos formadores de fronteiras simbólicas, mudam a paisagem e introduzem outras referências no mercado de bens materiais e simbólicos.
As mudanças geradas por tais estruturas provocam também transformações na relação dos atores com o espaço e entre si, entre os diversos grupos sociais, proporcionando outras maneiras de se relacionar e de apreender em roteiros sensíveis de percepção e ações, transitando, assim, em espaços de sociabilidades, construídos e eleitos pelo poder público, pela imprensa, pela elite e pela periferia, em um complexo campo de apropriações de memórias e de afetos, em narrativas conturbadas pela aceleração do tempo e das notícias.
De acordo com Maia, “a sociabilidade apresenta-se como um aspecto fundamental do estar-junto, de relações de partilha entre indivíduos livres para identificações sucessivas”. Entendemos por “sociabilidades” um conjunto de ações e de interações que integram homens e mulheres em suas ações como atores sociais, elegendo espaços, lugares, etiquetas e comportamentos, que viabilizam as relações sociais. A complexidade desse jogo incide na forma como tais locais são apropriados e ressignificados em hierarquias, novas posições e afetos relacionados ao lugar. Para lugar, compartilhamos a definição de Tuan: a transformação do espaço físico em lugar afetivo recria, renova e refunda as reminiscências, as memórias de indivíduos e de grupos de famílias, reinventando as redes de relações sociais e os espaços de sociabilidades nas periferias e centros das cidades.
Por outro lado, podemos pensar a sociabilidade como um jogo no qual os indivíduos desempenham papéis e assumem posições em relação às pessoas. Aqui adotamos o raciocínio proposto por Maia em uma alusão ao termo “jogo” ou “play”, na língua inglesa, em seus sentidos de “brincar”, “jogar (participar de um jogo)”, “fazer o papel de”, o que coloca em relevo o universo simbólico que envolve os indivíduos nas diversas formas de interação social e permite a fusão de subjetividades: o "estar-com", o "ser-com”.
Como um jogo social, a sociabilidade pode tomar muitas formas, desde as mais universais presentes no "instrumento mais abrangente da vida comum da humanidade - a conversação", até as mais específicas, tal como no jogo erótico do flerte, ou da sedução. O elemento de "jogo" sugere o modo complexo pelo qual os indivíduos podem se identificar e se inserir nas categorias socialmente construídas; abre questões acerca do modo pelo qual podemos nos apresentar para outras pessoas e manejar nossa própria apresentação, e indica, ainda, o caráter inevitavelmente construído das convenções, e, portanto, da própria realidade social.
As diversas escalas de apresentação, identificação e inserção dos indivíduos produzirão combinações, sínteses e interpretações particulares, proporcionando o estilo de vida urbano e a modernidade, que “(...) são faces do mesmo fenômeno de complexificação e diferenciação da vida social, cujas principais características são a não-linearidade e a grande autonomia de mundos e domínios específicos”. Esse estilo de vida urbano, ampliado pelo fenômeno da modernidade, instaura e se conforma no cotidiano adotado e transformado pelos espaços da cidade em constante mudança, especialmente nas cidades-capitais, em suas reformas urbanas do final do século XIX e início do século XX.
Peter Burke, em artigo de 1995 sobre as cidades pré-industriais, retrata a importância do cotidiano e das estruturas de lazer citadinas como importante espaço para a compreensão das mudanças em seu interior, como centros de comunicação de si e do mundo. Para esse mesmo autor, os lugares conhecidos como centros de comunicação funcionavam em tavernas e barbearias, núcleos locais de informação para os homens, enquanto as fontes públicas desempenhavam as mesmas funções para as mulheres, sendo as praças, os locais de informações acessíveis a ambos os sexos.
Com essas vertentes em perspectiva e na percepção apurada de Lucrécia Ferrara, capturamos a ideia da cidade como meio, mídia e mediação, para entendermos a construção de signos e de significados criados para a cidade em constante reorganização de seus símbolos.
Aldo Rossi assinala que a cidade é um dado concreto na sua forma construída, mas essa concretude nos permite entender como a arquitetura constrói a cidade, não só para funcionar, mas, sobretudo, para viver e comunicar. Funcionalidade e comunicação constituem dois parâmetros básicos da cidade através do seu meio originário, a arquitetura. Ou seja, a arquitetura induz, através de materiais, técnicas e formas construtivas, a função, o uso e o valor do espaço e, nesse sentido, constitui o suporte através do qual a cidade se constrói como meio comunicativo que possibilite sociabilidades e interações em constantes transformações.
Assim, a cidade se constrói como meio comunicativo através de seu traçado, projetado por especialistas ou remarcados pela população e, a partir disso, permite as sociabilidades e interações. Também organiza uma paisagem construída que permite tanto uma imaginária urbana quanto a eleição de elementos visuais que evocam ou propõem uma identidade urbana.
(...) a imaginária urbana, enquanto conjunto de imagens da paisagem da cidade, frequentemente assume o centro das metrópoles. De outro modo, sua recorrência insistente termina tecendo o conjunto urbano, demarcando suas características, tornando-se uma referência territorial da distribuição dos outros elementos do ambiente da cidade. Nesse sentido, as imagens assumem papel de destaque na paisagem construída, e identificam as áreas urbanas e suas comunidades, tornando-se marcos da cidade. Por isso, a imaginária urbana é produto da ordem social da urbanidade. Torna-se, então, emblema da identidade urbana.
As reformas vivenciadas em Curitiba, do final do século XIX até meados do século XX, promovem a eleição de diversos marcos urbanos significativos, como ruas centrais, praças e o Passeio Público, local de lazer e de passeio que, construído em meio a um charco, aliou prazer cultural, embelezamento e saneamento.
Reformas urbanas em Curitiba: a Belle Époque e as transformações estéticas:
Segundo diversos autores, a Belle Époque brasileira, influenciada pela França como centro artístico, científico e intelectual, teve início com a Proclamação da República, em 1889, e durou até os primeiros passos do Movimento Modernista, em 1922. Possui como características a euforia pelo progresso, as descobertas científicas e tecnológicas como o telefone e o cinema, a melhoria nos transportes públicos e particulares, as mudanças urbanas, para maior trânsito de mercadorias e pessoas e a disseminação de espaços culturais e de entretenimento, como livrarias, boulevards, salas de concerto, cafés, casas de chá, galerias de arte, cabarés, entre outros. Antes de adentrarmos a Curitiba desse período, convém verificarmos, em linhas gerais, o processo histórico de constituição dessa cidade.
Em 29 de março de 1693, o capitão-povoador Matheus Martins Leme promoveu a primeira eleição para a Câmara de Vereadores e a instalação da Vila, como exigiam as Ordenações Portuguesas, a partir do apelo de seus habitantes. Estava fundada a Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais.
A mudança do nome da vila e da rotina do povoado veio em 1721, com a visita do ouvidor Rafael Pires Pardinho, que estabeleceu, entre outras determinações, que as casas não poderiam ser construídas sem autorização da Câmara, deveriam ser cobertas com telhas e ainda que as ruas já iniciadas deveriam ser continuadas para que a vila crescesse com uniformidade.
O território que hoje conhecemos por Paraná integrava a Capitania de São Paulo e a distância e o descaso fizeram com que Curitiba vivenciasse um período de extrema pobreza. A prosperidade só viria a partir de 1812, com o tropeirismo. Ponto estratégico do caminho de Viamão a São Paulo e às Minas Gerais, o povoado viu crescer o comércio com a passagem dos tropeiros. O aluguel de fazendas para as invernadas transferia os habitantes do campo para o povoado. Surgiram lojas, armazéns e escritórios de negócios relacionados ao transporte de gado.
Em 1820, a vila chamada de Nossa Senhora dos Pinhais de Curitiba contava somente com 220 casas. Entretanto, o início da exploração e do comércio da erva-mate e da madeira provocou um novo impulso em seu crescimento.
Nos debates que se travaram na Câmara de Curitiba por ocasião da redação do primeiro código de posturas, os vereadores teriam em mãos justamente os provimentos, já então célebres, do Dr. Ouvidor Rafael Pires Pardinho. Com algumas adaptações aos novos tempos, foram eles que serviram de arcabouço para a legislação municipal de Curitiba do século XIX. Tanto que a comissão encarregada de propor as novas normas recebeu o nome de Comissão de Revisão dos Provimentos. A cidade pensada por essa Comissão, em 1829, em nada diferia da cidade colonial proposta pelo Dr. Pardinho em 1721. Para os vereadores do início do Império, a cidade ainda se definia em oposição ao campo, ou seja, pelo arruamento retilíneo em grade ortogonal, pelo adensamento, por quadras em volumetria única, pela ausência de vegetação, pela arquitetura luso-brasileira e pela separação entre o público e o privado. A eliminação dos espaços vazios no interior das quadras foi uma das primeiras preocupações dessa legislatura da Câmara quanto à conformação do espaço urbano.
Em 1841, com 5.819 habitantes, foi elevada à cidade; em 1853, criou-se a província do Paraná e, no ano seguinte, Curitiba foi escolhida para sua capital devido à localização mais centralizada no território. A cidade tornou-se, então, capital de uma província - a última instalada antes da Proclamação da República - numa região em que historiadores caracterizariam como de passagem entre o sul e o sudeste brasileiro, entre a sede da Corte no Rio de Janeiro e os demais países vizinhos da região sul do continente.
A partir do século XIX, Curitiba passou a receber uma grande quantidade de imigrantes europeus e asiáticos, transformando a cidade em muitos aspectos. O governo provincial estimulou a colonização com imigrantes europeus, principalmente italianos e poloneses. Com início em 1867, foram fundados 35 núcleos coloniais nas terras de mata em torno dos campos de Curitiba e a cidade conheceu um novo surto de progresso com o desenvolvimento das atividades agrícolas e o início da industrialização.
Até o século XVIII, os habitantes da cidade eram índios, mamelucos, portugueses e espanhóis. Alemães, franceses, suíços, poloneses, italianos, ucranianos, entre outras etnias, nos centros urbanos ou nos núcleos coloniais, conferiram um novo ritmo de crescimento à cidade e influenciaram de forma marcante os hábitos e costumes locais.
Em 1872, segundo registros, a presença dos alemães no núcleo urbano já era notável. Eles iniciaram o processo de industrialização - metalurgia e gráfica -, incrementaram o comércio, introduziram modificações na arquitetura e disseminaram hábitos alimentares, como descreve Bahls:
Muitos desses imigrantes que se radicaram em Curitiba [a partir de 1870] iriam instalar-se no ramo da construção civil. Uma parte serviu de mão de obra desqualificada, utilizada nas obras públicas conduzidas pelo governo da província, como a estrada da Graciosa. Outros, que tinham qualificação como mestres de obras, pedreiros e carpinteiros, transformaram-se em pequenos empreiteiros da construção civil. Além de difundirem novas técnicas construtivas e novos materiais, como o tijolo e a telha chata, eles contribuíram para a europeização dos modelos arquitetônicos utilizados na cidade. Esses empreiteiros também assumiram certas obras públicas de maior vulto, as quais auxiliaram a mudar as feições urbanas de Curitiba, como a Santa Casa de Misericórdia e a Catedral.
Os poloneses chegaram em 1871 e criaram as colônias de Tomás Coelho (Araucária), Muricy (São José dos Pinhais), Santa Cândida, Orleans, Lamenha, Pilarzinho e Abranches. Atuaram basicamente na lavoura e no comércio. Os italianos vieram para Curitiba em 1872 e, em 1878, criaram a colônia Santa Felicidade. Assim como os poloneses, eles vendiam na cidade, de carroça, sua produção de hortaliças. Os ucranianos vieram em 1895. Estabeleceram-se no Campo da Galícia e expandiram suas atividades por todo o bairro Bigorrilho.
Os japoneses marcaram presença em Curitiba a partir de 1915. Em 1924, deslocaram-se em maior número e se fixaram na cidade e redondezas - os bairros Uberaba, Campo Comprido, Santa Felicidade e o município de Araucária. Os sírios e libaneses, no início do século XX, estabeleceram-se no comércio de roupas, sapatos, tecidos e armarinhos. Em função das características de suas lojas, ocuparam a área central da cidade.
Curitiba também guarda sinais da presença negra, embora esta seja pouco documentada. Auguste de Saint-Hilaire, naturalista francês que andou pela cidade em 1820, fez levantamentos sobre a população da província: em 1818, havia 1.587 escravos, contra 1.941 vinte anos depois, em 1838; a população total era de 11.014 (1818) e de 16.155 (1838), ou seja, a população cresceu em 5.141 pessoas e os escravos, em 354.
Província com pouca densidade populacional e sem muita importância econômica, o Paraná expandiu tanto sua fronteira social quanto a econômica a partir da erva-mate e da formação de uma burguesia ervateira, cujos interesses projetavam-se para mercados externos. Em meio ao crescimento econômico que experimentou no último quarto do século XIX, os representantes da região lutavam para aumentar o peso político de Curitiba.
Para isso, procurou-se, à época, desenvolver instituições e espaços culturais, como o Museu de Curitiba (Museu Paranaense), as bibliotecas, o arquivo público, teatro, escolas, em uma tentativa de projetar-se no cenário político e intelectual do país, como também os administradores e os técnicos das cidades tornaram-se importantes agentes de transformações ao elaborarem planos de ordenamento e de embelezamento urbanos.
No caso de Curitiba, o engenheiro Cândido Ferreira de Abreu, prefeito de 1913 a 1916, realizou intensas melhorias na capital, pavimentando ruas e ajardinando praças, atribuindo nova configuração à urbe.
Serviços de remoção de terras, terraplanagem, macadamização, calçamento a paralelepípedos, arborização, confecção de bueiros e galerias fluviais, retificação e canalização dos rios, construção e reconstrução de praças, remodelação das fachadas dos prédios do quadro urbano, bem como, calçamentos dos passeios a petit-pavê, tornaram-se equipamentos bastante comum a serem adotados. Apenas para se ter uma ideia da amplitude das intervenções desse período, no início de 1914 já havia 600 operários contratados para a realização dos trabalhos. Só com macadame foi revestida uma área total de 293.524,60 m² de ruas, em todo o triênio de Candido de Abreu.
Para Pereira, as reformas urbanísticas transformaram as referências coloniais, produziram outros espaços de circulação, como praças, por onde passaram os primeiros artistas, fotógrafos, escritores e cineastas curitibanos, projetando, assim, uma ideia de sociedade técnica e científica em pleno movimento em um eurocentrismo mascarado de cosmopolitismo, uma modernização conservadora organizada pela burguesia do erva mate.
De acordo com Bahls, o professor, advogado, jornalista, deputado curitibano e diretor do Museu Paranaense, no período de 1930 a 1931, Sebastião Paraná (1864-1938), relata que, já em 1900, Curitiba possuía 3.100 prédios e 35 mil habitantes em todo o município. Os problemas urbanos, nesse início do século XX, relativos ao fornecimento de água, saneamento e pavimentação insuficientes eram constantemente referenciados, especialmente pela população, na coluna "reclames" na imprensa. Cunha Filho relata a prestação de contas da Prefeitura Municipal de Curitiba:
Num relatório de 1910, o Diretor de Obras da Prefeitura, engenheiro André Jouve, listava as principais realizações daquele ano: calçamento, recalçamento, macadamização, meios-fios, bueiros (limpeza e instalação), bocas de esgotos, lajes para passeios, assentamentos de pedras e sarjetas, reconstrução de passeios, movimentos de terras (aterros e terraplanagens), limpeza de rios, praças, limpeza pública, cemitério municipal (embelezamento e nivelamento) e reformas no Passeio Público.
Dessa forma, temos uma cidade em busca de melhorias, tendo como norte as medidas de saneamento, embelezamento, calçamento, novos ares para o benefício dos negócios. O Passeio Público servirá como exemplo de projeto público de reorganização de espaço e local de lazer e cultura inserido na lógica da ação de política sanitária, civilização e progresso. Foi construído sobre uma gleba às margens do Rio Belém, área de várzea sujeita a constantes alagamentos. A obra pretendeu transformar o brejo alagadiço em um parque agradável para a elite paranaense, com grutas e pontes de pedra, lagos e ilhas, e em solução sanitária, corrigindo a rotina de inundações na cidade.
O Passeio Público, “as magníficas pontes, os diversos passadiços, avenidas suntuosas”, enquanto espaço no qual as famílias poderiam aproveitar o “bom ar” de bem estar, sua inauguração (em 1886) e a primeira década do século XX:
Aliado à ideia de saneamento e promoção de embelezamento da cidade pela arborização de ruas e praças com influência de modelos urbanísticos europeus, o Passeio Público se constituirá no exemplo maior de concretização desse ideal durante o século XIX, em uma tentativa de conciliar intervenção na área urbana, unindo o poder público e a iniciativa privada.
Tornou-se prioritário atacar dois problemas na capital: sanar regiões pantanosas e sujeitas a alagamentos e dotar a cidade de um “logradouro ameno”, destinado ao lazer da população, que, conforme a observação de Nestor Victor, tinha seu lazer limitado a festas em casas de famílias, clubes e festas de igreja.
O Passeio Público é o mais antigo parque municipal de Curitiba, criado por Alfredo D´Escragnolle Taunay, quando presidente da Província do Paraná (1885-1886), e inaugurado em 1886. Nasceu da drenagem de um terreno pantanoso, como já mencionamos, e passou por várias transformações ao longo do tempo, tendo sido conhecido também como Jardim Botânico.
A seguir, apresentamos um trecho descritivo, em jornal da época, mencionado por Lacerda, sobre as maravilhas da organização daquele espaço e dos equipamentos de lazer e cultura disponíveis, tanto para adultos quanto para a infância.
Os verdes tabuleiros em inúmeras voltas à margem de outras tantas que oferece o rio - Belém -, as majestosas palmeiras, as magníficas pontes, os diversos passadiços, avenidas suntuosas, as quais receberam os nomes de cidadãos de mérito, uma elegante máquina rodante de cavalinhos, para o entretenimento da infância, um lindo bote ou escaler sulcando as águas do famoso Belém, as bandas de música marcial com seus melodiosos sons, tudo isto enfim nos encantou.
A partir de sua inauguração o Passeio se tornou o mais tradicional ponto de encontro dos curitibanos, cumprindo a sua finalidade enquanto espaço de entretenimento, lazer e sociabilidade. Em 1887, foram inaugurados oito lampiões a gasolina, mais tarde aumentados para dezessete, doados pelo comércio e indústria da cidade. No mesmo ano, ali brilhou pela primeira vez a lâmpada incandescente de luz elétrica em concorrida demonstração.
O Passeio Público, primeiro zoológico da cidade, foi palco de fatos marcantes na vida cultural e no folclore curitibano: uma batalha de confetes em 1900; a realização de regatas e quermesses em prol da Sociedade Protetora dos Operários no ano de 1902; ponto de início do voo de balão de Maria Alda que aterrissou no telhado da Catedral Metropolitana, na Praça Tiradentes, em 1909. Em 1911, na ilha desde então chamada “da Ilusão”, em referência ao livro de poemas “Ilusão”, de sua autoria, o simbolista Emiliano Perneta foi coroado "Príncipe dos Poetas Paranaenses", como também, as senhoras do Clube Curitibano promoveram um five-o-clock-tea e uma garden party entre os seus gramados, em 1913.
A figura 1 apresentada mais adiante, é fotografia reproduzida de cartões postais do ano de 1910, anterior à remodelação mais significativa, realizada a partir de 1915, com a construção de uma cerca de cimento armado, imitando madeira roliça, gruta artificial e a compra de um terreno na parte norte para a construção de uma cascata, quando o Passeio Público assumiu as feições de um jardim paisagista inglês, ou seja, que valoriza a paisagem natural com formas curvas e arredondadas no relevo, nos caminhos e na construção dos maciços e bosques; onde as árvores e arbustos são muitas vezes dispostos de acordo com o porte e a coloração, o que não impede a mistura ou a utilização isolada.
As representações de “cidades modernas” tornam-se objetos de desejo e consumo em formato de cartões postais, nos quais o olhar flagra e promove um recorte desejado e desejável, souvenir de viagem, lembrança de um instante, congelamento de uma experiência vivenciada por meio da viagem, um recorte de construção da imagem organizada e selecionada de um espaço e de um modo de viver.
(...) Segundo Fernandes Júnior, o cartão-postal pode ser entendido como o início do processo de globalização por meio da imagem de um mundo que se internacionalizava pelo crescimento do comércio e dos fluxos migratórios. O postal promoveu a democratização da imagem fotográfica garantindo para as gerações futuras acesso a uma memória que poderia ter sido facilmente descartada.
Os fragmentos visuais transpostos nos cartões postais nos colocam outras questões como a multiplicação das imagens em papel, disponíveis para um público muito mais amplo e diverso, em uma educação dos sentidos pelo visual, pela reiteração do conhecido como dado natural e a mensagem, mesmo artificial ou imaginária, do “estar lá”, vivenciando essa experiência.
Há ainda o recorte de uma natureza retalhada e transposta para o urbano, evocando a ideia de uma natureza domesticada, espaço de conforto - psicológico e físico - que propõe reviver o bucólico em meio ao novo ritmo imposto pela modernidade em crescente expansão.
À essência movente dos cartões junta-se uma outra qualidade. Conforme expõem Silvio Barini e Celeste Zenha, com eles o lugar que se faz retratar procura fixar os enquadramentos através do que pretende ser olhado. Decerto, os postais promovem uma educação dos sentidos. É comum reconhecer em fotos tiradas por turistas, ou mesmo por “gente do lugar”, a reprodução dos elementos, luminosidade e até perspectivas já consagradas nos cartões postais. Certamente esta permanência é indicadora de que os locais apresentados nos cartões acabam sendo muito visitados. Como guias que à distancia podem comunicar os espaços, os monumentos e a arquitetura serem visitados e admirados, os postais acabam por fundar, na repetição de suas imagens, o hábito.
Como tomamos a fotografia na premissa de Rouillé em “produzir e reproduzir o que é passível de ser visível”, indagamos o que é possível de ser visualizado nas fotografias selecionadas, tanto em seu aspecto exterior quanto acerca das possíveis mensagens e seu conteúdo.
A Figura 1 nos apresenta uma perspectiva do Passeio Público: de uma margem, vê-se a ilha e suas duas massas de folhagens, uma maior que a outra, que tomam o centro, tendo construções relativas ao engenho Bittencourt ao fundo, em uma linha de horizonte, concentrando um maior volume à esquerda. No plano à frente, a água ondulada do rio projeta a sombra das árvores da ilha, tendo a direita, um pequeno trecho da margem com mato alto.
Segundo diversos autores, a Belle Époque brasileira, influenciada pela França como centro artístico, científico e intelectual, teve início com a Proclamação da República, em 1889, e durou até os primeiros passos do Movimento Modernista, em 1922. Possui como características a euforia pelo progresso, as descobertas científicas e tecnológicas como o telefone e o cinema, a melhoria nos transportes públicos e particulares, as mudanças urbanas, para maior trânsito de mercadorias e pessoas e a disseminação de espaços culturais e de entretenimento, como livrarias, boulevards, salas de concerto, cafés, casas de chá, galerias de arte, cabarés, entre outros. Antes de adentrarmos a Curitiba desse período, convém verificarmos, em linhas gerais, o processo histórico de constituição dessa cidade.
Em 29 de março de 1693, o capitão-povoador Matheus Martins Leme promoveu a primeira eleição para a Câmara de Vereadores e a instalação da Vila, como exigiam as Ordenações Portuguesas, a partir do apelo de seus habitantes. Estava fundada a Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais.
A mudança do nome da vila e da rotina do povoado veio em 1721, com a visita do ouvidor Rafael Pires Pardinho, que estabeleceu, entre outras determinações, que as casas não poderiam ser construídas sem autorização da Câmara, deveriam ser cobertas com telhas e ainda que as ruas já iniciadas deveriam ser continuadas para que a vila crescesse com uniformidade.
O território que hoje conhecemos por Paraná integrava a Capitania de São Paulo e a distância e o descaso fizeram com que Curitiba vivenciasse um período de extrema pobreza. A prosperidade só viria a partir de 1812, com o tropeirismo. Ponto estratégico do caminho de Viamão a São Paulo e às Minas Gerais, o povoado viu crescer o comércio com a passagem dos tropeiros. O aluguel de fazendas para as invernadas transferia os habitantes do campo para o povoado. Surgiram lojas, armazéns e escritórios de negócios relacionados ao transporte de gado.
Em 1820, a vila chamada de Nossa Senhora dos Pinhais de Curitiba contava somente com 220 casas. Entretanto, o início da exploração e do comércio da erva-mate e da madeira provocou um novo impulso em seu crescimento.
Nos debates que se travaram na Câmara de Curitiba por ocasião da redação do primeiro código de posturas, os vereadores teriam em mãos justamente os provimentos, já então célebres, do Dr. Ouvidor Rafael Pires Pardinho. Com algumas adaptações aos novos tempos, foram eles que serviram de arcabouço para a legislação municipal de Curitiba do século XIX. Tanto que a comissão encarregada de propor as novas normas recebeu o nome de Comissão de Revisão dos Provimentos. A cidade pensada por essa Comissão, em 1829, em nada diferia da cidade colonial proposta pelo Dr. Pardinho em 1721. Para os vereadores do início do Império, a cidade ainda se definia em oposição ao campo, ou seja, pelo arruamento retilíneo em grade ortogonal, pelo adensamento, por quadras em volumetria única, pela ausência de vegetação, pela arquitetura luso-brasileira e pela separação entre o público e o privado. A eliminação dos espaços vazios no interior das quadras foi uma das primeiras preocupações dessa legislatura da Câmara quanto à conformação do espaço urbano.
Em 1841, com 5.819 habitantes, foi elevada à cidade; em 1853, criou-se a província do Paraná e, no ano seguinte, Curitiba foi escolhida para sua capital devido à localização mais centralizada no território. A cidade tornou-se, então, capital de uma província - a última instalada antes da Proclamação da República - numa região em que historiadores caracterizariam como de passagem entre o sul e o sudeste brasileiro, entre a sede da Corte no Rio de Janeiro e os demais países vizinhos da região sul do continente.
A partir do século XIX, Curitiba passou a receber uma grande quantidade de imigrantes europeus e asiáticos, transformando a cidade em muitos aspectos. O governo provincial estimulou a colonização com imigrantes europeus, principalmente italianos e poloneses. Com início em 1867, foram fundados 35 núcleos coloniais nas terras de mata em torno dos campos de Curitiba e a cidade conheceu um novo surto de progresso com o desenvolvimento das atividades agrícolas e o início da industrialização.
Até o século XVIII, os habitantes da cidade eram índios, mamelucos, portugueses e espanhóis. Alemães, franceses, suíços, poloneses, italianos, ucranianos, entre outras etnias, nos centros urbanos ou nos núcleos coloniais, conferiram um novo ritmo de crescimento à cidade e influenciaram de forma marcante os hábitos e costumes locais.
Em 1872, segundo registros, a presença dos alemães no núcleo urbano já era notável. Eles iniciaram o processo de industrialização - metalurgia e gráfica -, incrementaram o comércio, introduziram modificações na arquitetura e disseminaram hábitos alimentares, como descreve Bahls:
Muitos desses imigrantes que se radicaram em Curitiba [a partir de 1870] iriam instalar-se no ramo da construção civil. Uma parte serviu de mão de obra desqualificada, utilizada nas obras públicas conduzidas pelo governo da província, como a estrada da Graciosa. Outros, que tinham qualificação como mestres de obras, pedreiros e carpinteiros, transformaram-se em pequenos empreiteiros da construção civil. Além de difundirem novas técnicas construtivas e novos materiais, como o tijolo e a telha chata, eles contribuíram para a europeização dos modelos arquitetônicos utilizados na cidade. Esses empreiteiros também assumiram certas obras públicas de maior vulto, as quais auxiliaram a mudar as feições urbanas de Curitiba, como a Santa Casa de Misericórdia e a Catedral.
Os poloneses chegaram em 1871 e criaram as colônias de Tomás Coelho (Araucária), Muricy (São José dos Pinhais), Santa Cândida, Orleans, Lamenha, Pilarzinho e Abranches. Atuaram basicamente na lavoura e no comércio. Os italianos vieram para Curitiba em 1872 e, em 1878, criaram a colônia Santa Felicidade. Assim como os poloneses, eles vendiam na cidade, de carroça, sua produção de hortaliças. Os ucranianos vieram em 1895. Estabeleceram-se no Campo da Galícia e expandiram suas atividades por todo o bairro Bigorrilho.
Os japoneses marcaram presença em Curitiba a partir de 1915. Em 1924, deslocaram-se em maior número e se fixaram na cidade e redondezas - os bairros Uberaba, Campo Comprido, Santa Felicidade e o município de Araucária. Os sírios e libaneses, no início do século XX, estabeleceram-se no comércio de roupas, sapatos, tecidos e armarinhos. Em função das características de suas lojas, ocuparam a área central da cidade.
Curitiba também guarda sinais da presença negra, embora esta seja pouco documentada. Auguste de Saint-Hilaire, naturalista francês que andou pela cidade em 1820, fez levantamentos sobre a população da província: em 1818, havia 1.587 escravos, contra 1.941 vinte anos depois, em 1838; a população total era de 11.014 (1818) e de 16.155 (1838), ou seja, a população cresceu em 5.141 pessoas e os escravos, em 354.
Província com pouca densidade populacional e sem muita importância econômica, o Paraná expandiu tanto sua fronteira social quanto a econômica a partir da erva-mate e da formação de uma burguesia ervateira, cujos interesses projetavam-se para mercados externos. Em meio ao crescimento econômico que experimentou no último quarto do século XIX, os representantes da região lutavam para aumentar o peso político de Curitiba.
Para isso, procurou-se, à época, desenvolver instituições e espaços culturais, como o Museu de Curitiba (Museu Paranaense), as bibliotecas, o arquivo público, teatro, escolas, em uma tentativa de projetar-se no cenário político e intelectual do país, como também os administradores e os técnicos das cidades tornaram-se importantes agentes de transformações ao elaborarem planos de ordenamento e de embelezamento urbanos.
No caso de Curitiba, o engenheiro Cândido Ferreira de Abreu, prefeito de 1913 a 1916, realizou intensas melhorias na capital, pavimentando ruas e ajardinando praças, atribuindo nova configuração à urbe.
Serviços de remoção de terras, terraplanagem, macadamização, calçamento a paralelepípedos, arborização, confecção de bueiros e galerias fluviais, retificação e canalização dos rios, construção e reconstrução de praças, remodelação das fachadas dos prédios do quadro urbano, bem como, calçamentos dos passeios a petit-pavê, tornaram-se equipamentos bastante comum a serem adotados. Apenas para se ter uma ideia da amplitude das intervenções desse período, no início de 1914 já havia 600 operários contratados para a realização dos trabalhos. Só com macadame foi revestida uma área total de 293.524,60 m² de ruas, em todo o triênio de Candido de Abreu.
Para Pereira, as reformas urbanísticas transformaram as referências coloniais, produziram outros espaços de circulação, como praças, por onde passaram os primeiros artistas, fotógrafos, escritores e cineastas curitibanos, projetando, assim, uma ideia de sociedade técnica e científica em pleno movimento em um eurocentrismo mascarado de cosmopolitismo, uma modernização conservadora organizada pela burguesia do erva mate.
De acordo com Bahls, o professor, advogado, jornalista, deputado curitibano e diretor do Museu Paranaense, no período de 1930 a 1931, Sebastião Paraná (1864-1938), relata que, já em 1900, Curitiba possuía 3.100 prédios e 35 mil habitantes em todo o município. Os problemas urbanos, nesse início do século XX, relativos ao fornecimento de água, saneamento e pavimentação insuficientes eram constantemente referenciados, especialmente pela população, na coluna "reclames" na imprensa. Cunha Filho relata a prestação de contas da Prefeitura Municipal de Curitiba:
Num relatório de 1910, o Diretor de Obras da Prefeitura, engenheiro André Jouve, listava as principais realizações daquele ano: calçamento, recalçamento, macadamização, meios-fios, bueiros (limpeza e instalação), bocas de esgotos, lajes para passeios, assentamentos de pedras e sarjetas, reconstrução de passeios, movimentos de terras (aterros e terraplanagens), limpeza de rios, praças, limpeza pública, cemitério municipal (embelezamento e nivelamento) e reformas no Passeio Público.
Dessa forma, temos uma cidade em busca de melhorias, tendo como norte as medidas de saneamento, embelezamento, calçamento, novos ares para o benefício dos negócios. O Passeio Público servirá como exemplo de projeto público de reorganização de espaço e local de lazer e cultura inserido na lógica da ação de política sanitária, civilização e progresso. Foi construído sobre uma gleba às margens do Rio Belém, área de várzea sujeita a constantes alagamentos. A obra pretendeu transformar o brejo alagadiço em um parque agradável para a elite paranaense, com grutas e pontes de pedra, lagos e ilhas, e em solução sanitária, corrigindo a rotina de inundações na cidade.
O Passeio Público, “as magníficas pontes, os diversos passadiços, avenidas suntuosas”, enquanto espaço no qual as famílias poderiam aproveitar o “bom ar” de bem estar, sua inauguração (em 1886) e a primeira década do século XX:
Aliado à ideia de saneamento e promoção de embelezamento da cidade pela arborização de ruas e praças com influência de modelos urbanísticos europeus, o Passeio Público se constituirá no exemplo maior de concretização desse ideal durante o século XIX, em uma tentativa de conciliar intervenção na área urbana, unindo o poder público e a iniciativa privada.
Tornou-se prioritário atacar dois problemas na capital: sanar regiões pantanosas e sujeitas a alagamentos e dotar a cidade de um “logradouro ameno”, destinado ao lazer da população, que, conforme a observação de Nestor Victor, tinha seu lazer limitado a festas em casas de famílias, clubes e festas de igreja.
O Passeio Público é o mais antigo parque municipal de Curitiba, criado por Alfredo D´Escragnolle Taunay, quando presidente da Província do Paraná (1885-1886), e inaugurado em 1886. Nasceu da drenagem de um terreno pantanoso, como já mencionamos, e passou por várias transformações ao longo do tempo, tendo sido conhecido também como Jardim Botânico.
A seguir, apresentamos um trecho descritivo, em jornal da época, mencionado por Lacerda, sobre as maravilhas da organização daquele espaço e dos equipamentos de lazer e cultura disponíveis, tanto para adultos quanto para a infância.
Os verdes tabuleiros em inúmeras voltas à margem de outras tantas que oferece o rio - Belém -, as majestosas palmeiras, as magníficas pontes, os diversos passadiços, avenidas suntuosas, as quais receberam os nomes de cidadãos de mérito, uma elegante máquina rodante de cavalinhos, para o entretenimento da infância, um lindo bote ou escaler sulcando as águas do famoso Belém, as bandas de música marcial com seus melodiosos sons, tudo isto enfim nos encantou.
A partir de sua inauguração o Passeio se tornou o mais tradicional ponto de encontro dos curitibanos, cumprindo a sua finalidade enquanto espaço de entretenimento, lazer e sociabilidade. Em 1887, foram inaugurados oito lampiões a gasolina, mais tarde aumentados para dezessete, doados pelo comércio e indústria da cidade. No mesmo ano, ali brilhou pela primeira vez a lâmpada incandescente de luz elétrica em concorrida demonstração.
O Passeio Público, primeiro zoológico da cidade, foi palco de fatos marcantes na vida cultural e no folclore curitibano: uma batalha de confetes em 1900; a realização de regatas e quermesses em prol da Sociedade Protetora dos Operários no ano de 1902; ponto de início do voo de balão de Maria Alda que aterrissou no telhado da Catedral Metropolitana, na Praça Tiradentes, em 1909. Em 1911, na ilha desde então chamada “da Ilusão”, em referência ao livro de poemas “Ilusão”, de sua autoria, o simbolista Emiliano Perneta foi coroado "Príncipe dos Poetas Paranaenses", como também, as senhoras do Clube Curitibano promoveram um five-o-clock-tea e uma garden party entre os seus gramados, em 1913.
A figura 1 apresentada mais adiante, é fotografia reproduzida de cartões postais do ano de 1910, anterior à remodelação mais significativa, realizada a partir de 1915, com a construção de uma cerca de cimento armado, imitando madeira roliça, gruta artificial e a compra de um terreno na parte norte para a construção de uma cascata, quando o Passeio Público assumiu as feições de um jardim paisagista inglês, ou seja, que valoriza a paisagem natural com formas curvas e arredondadas no relevo, nos caminhos e na construção dos maciços e bosques; onde as árvores e arbustos são muitas vezes dispostos de acordo com o porte e a coloração, o que não impede a mistura ou a utilização isolada.
As representações de “cidades modernas” tornam-se objetos de desejo e consumo em formato de cartões postais, nos quais o olhar flagra e promove um recorte desejado e desejável, souvenir de viagem, lembrança de um instante, congelamento de uma experiência vivenciada por meio da viagem, um recorte de construção da imagem organizada e selecionada de um espaço e de um modo de viver.
(...) Segundo Fernandes Júnior, o cartão-postal pode ser entendido como o início do processo de globalização por meio da imagem de um mundo que se internacionalizava pelo crescimento do comércio e dos fluxos migratórios. O postal promoveu a democratização da imagem fotográfica garantindo para as gerações futuras acesso a uma memória que poderia ter sido facilmente descartada.
Os fragmentos visuais transpostos nos cartões postais nos colocam outras questões como a multiplicação das imagens em papel, disponíveis para um público muito mais amplo e diverso, em uma educação dos sentidos pelo visual, pela reiteração do conhecido como dado natural e a mensagem, mesmo artificial ou imaginária, do “estar lá”, vivenciando essa experiência.
Há ainda o recorte de uma natureza retalhada e transposta para o urbano, evocando a ideia de uma natureza domesticada, espaço de conforto - psicológico e físico - que propõe reviver o bucólico em meio ao novo ritmo imposto pela modernidade em crescente expansão.
À essência movente dos cartões junta-se uma outra qualidade. Conforme expõem Silvio Barini e Celeste Zenha, com eles o lugar que se faz retratar procura fixar os enquadramentos através do que pretende ser olhado. Decerto, os postais promovem uma educação dos sentidos. É comum reconhecer em fotos tiradas por turistas, ou mesmo por “gente do lugar”, a reprodução dos elementos, luminosidade e até perspectivas já consagradas nos cartões postais. Certamente esta permanência é indicadora de que os locais apresentados nos cartões acabam sendo muito visitados. Como guias que à distancia podem comunicar os espaços, os monumentos e a arquitetura serem visitados e admirados, os postais acabam por fundar, na repetição de suas imagens, o hábito.
Como tomamos a fotografia na premissa de Rouillé em “produzir e reproduzir o que é passível de ser visível”, indagamos o que é possível de ser visualizado nas fotografias selecionadas, tanto em seu aspecto exterior quanto acerca das possíveis mensagens e seu conteúdo.
A Figura 1 nos apresenta uma perspectiva do Passeio Público: de uma margem, vê-se a ilha e suas duas massas de folhagens, uma maior que a outra, que tomam o centro, tendo construções relativas ao engenho Bittencourt ao fundo, em uma linha de horizonte, concentrando um maior volume à esquerda. No plano à frente, a água ondulada do rio projeta a sombra das árvores da ilha, tendo a direita, um pequeno trecho da margem com mato alto.
Na desmontagem da fotografia, os volumes estão distribuídos de forma a valorizar a ilha ao centro e, ao mesmo tempo, proporcionar uma linha de fuga à direita, enfocando, ao longe, o engenho Bittencourt, que será incorporado posteriormente ao Passeio Público.
Uma notícia do jornal "A República", de Curitiba, no dia 5 de novembro de 1910, pode nos auxiliar a decifrar a fotografia no tocante à sensação de melancolia: “(...) Em 1910 (...) reapareceram as referências a sua situação de abandono. Apesar das reformas efetuadas pela municipalidade, a população, que havia muito deixara de frequentar o local, não parecia disposta a voltar a visitá-lo.”. Essa situação se reverterá com as reformas que ocorrerão mais à frente.
O Passeio Público, desde sua inauguração até a metade dos anos 1910, pode ser considerado como um elemento significativo das propostas urbanas implementadas nesse período e indicador de uma nova estética urbana, aliando natureza domesticada e soluções às enchentes dos rios Belém e Ivo. No entanto, a falta de estrutura municipal, juntamente com a escassez de recursos financeiros específicos para sua manutenção, relegou-o ao abandono, embora não totalmente, mas em vários momentos, por parte da população curitibana. Ressalta-se que as intervenções significativas, executadas durante a administração de Cândido de Abreu, na desapropriação de terrenos próximos e na reorganização do espaço, foram insuficientes para vencer os problemas estruturais daquele momento.
Um dado nos chama a atenção: na ficha catalográfica temos uma informação, reproduzida por F. [Francisco] Kava, que consta na Coleção Claudio Macedo Lopes e nos traz mais dados, como a data de entrada do documento, em 2 de abril de 1975.
Aqui temos uma situação muito interessante. Francisco Kava Sobrinho (1935-1985), fotógrafo e ambientalista curitibano, após a experiência com o fotojornalismo, na década de 1960, em parceria com o fotógrafo Jesus Santoro, abre o estúdio Prisma Realizações Ltda., local onde ambos trabalhavam com fotografias publicitárias e de acompanhamento de obras públicas locais. No início da década de 1970, os fotógrafos fecharam o estúdio Prisma Realizações, e Kava continuou na fotografia publicitária, abrindo o estúdio fotográfico Foto Panorama, em 1975.
Araújo nos informa outro dado importante sobre Kava Sobrinho: “Também contribui de maneira significativa com a FCC [Fundação Cultural de Curitiba] na realização e recuperação de fotografias, principalmente para a Casa da Memória”, sem especificar o período de atuação ou seu papel para tanto: se contratado ou de forma voluntária. Essa informação é extremamente pertinente para pensarmos os trânsitos culturais de determinadas imagens e os circuitos de gestão das memórias relativas à Curitiba.
A Fundação Cultural de Curitiba foi criada em 1973 com a tarefa de “formular a política cultural do Município”, em articulação com órgãos afins de qualquer esfera de poder, e de promover a defesa do patrimônio histórico e artístico da cidade.
A Casa Romário Martins, inaugurada em 1973, passou a sediar o primeiro núcleo voltado à preservação da memória de Curitiba, base inicial da Casa da Memória e da Diretoria de Patrimônio Cultural do município. Desde a inauguração da Casa da Memória, em 1981, a Casa Romário Martins é utilizada como espaço de exposição ligado à história e aos fatos culturais de Curitiba.
Funciona como um centro de informações sobre a cidade, sua história, sua gente, suas coisas, encaminhando às verdadeiras fontes o visitante e o próprio curitibano, divulgando esse trabalho através de exposições periódicas e criando um ponto de encontro de pessoas ligadas a história e à cultura de Curitiba. Abriga também o Arquivo Histórico do Município, em caráter provisório, visto que o material coletado (documentos escritos, gravados, fotos e filmes antigos) ainda não se apresenta em grande volume, pois o trabalho de pesquisa foi iniciado há pouco tempo.
Na busca pela constituição desse novo acervo para a Fundação Cultural, as memórias de funcionários ainda atuantes no Museu Paranaense indicam a década de 1980 como a de presença de Kava na instituição, para a reprodução do acervo fotográfico em sistema de permuta. Não há registro de trabalhos específicos de Kava para o Museu, e sim de sua presença na reprodução de diversas imagens. Entretanto, mesmo que a memória desses agentes reporte a 1980, é mais factível constatar a atuação de Kava em 1975, conforme as fichas de catalogação e o contexto de organização de acervo da Fundação Cultural.
Essas aproximações e distanciamentos conforme os interesses políticos no âmbito municipal e estadual nos levam a pensar não somente o formato, mas os sentidos propostos por instituições distintas para a guarda e organização das memórias sobre Curitiba.
As memórias organizadas pela Casa de Memória, a preservação das características e identidade da cidade e sua constante reafirmação sedimentam em camadas (imagéticas, orais, arquitetônicas, materiais, documentais) uma ideia de Curitiba: de pequena vila a moderna capital, com planejamento urbano de ponta, grande afluxo migratório europeu e pioneira em questões de preservação ambiental, uma capital verde. O objetivo de “encaminhando às verdadeiras fontes o visitante e o próprio curitibano” nos faz refletir qual o sentido dado ‘às verdadeiras fontes” e sua pertinência no acervo de tal instituição.
Por outro lado, o Museu Paranaense, ao se sustentar em um espaço para a construção de uma memória e ideia do Paraná, enquanto estado, enquanto entidade personificada em elementos - como força, natureza, imigração, desenvolvimento e modernidade - fraciona e projeta a imagem/imaginário de sua capital como moderna e pujante, com planos de reformas urbanas adequadas ou, além de seu próprio tempo, cidade-sede do poder administrativo que espelharia o dinamismo do Paraná.
Podemos considerar que, na reacomodação das estruturas estatais e municipais, tenhamos um quadro de disputas simbólicas, no qual grupos políticos distintos se apropriam da (e ao mesmo tempo permutam a) construção de imaginários. Ao alimentar tal circulação, muitas imagens escapam desse circuito e apresentam olhares peculiares, pois as fotografias, várias inéditas, constantes no acervo fotográfico do Museu Paranaense em sua divulgação, apresentam imagens de Curitiba enquadradas, modeladas com o olhar de seu tempo, muitas em perspectivas diferenciadas, mas que capturam e registram instantes precisos e transitórios de transformação de uma sociedade e sua cidade, como no caso da figura 2, apresentada na próxima seção.
A década de 1920 e as ações de Bouvard e Saturnino Brito: lentidão, civilização e o footing no Passeio:
"É encantadoramente lindo. Os inúmeros canais que tanto prejudicavam sempre a conservação do nosso jardim botânico são suprimidos; apenas o curso natural do rio Belém o recortará convenientemente, e dará a água necessária a um grande tanque de natação, cimentado e pitorescamente localizado. (...) O projeto, quanto à sua arquitetura, é indescritível. É um verdadeiro torneio de desenho, de encantador efeito, que uma vez executado muito recomendará a nossa cidade, constituindo mesmo o clou [prego] dos atuais trabalhos de embelezamento."
Com essa reportagem, o jornal A República, em sua edição de 30 de julho de 1915, anuncia o plano de modificações do Passeio Público, proposto pelo arquiteto contratado Joseph Antoine Bouvard (1840-1920) que, como credencial de trabalho, apresenta a remodelação do Palais de Luxembourg, adaptando-o para ser sede do governo de Versailles, e também outras grandes obras de projetos urbanísticos em exposições, festas públicas e embelezamento urbano na França.
Os relatórios de gestão de Cândido de Abreu do ano de 1915 concluem que “a reforma do Passeio Público, em moldes modestos, está em andamento”, fato reafirmado pelo Relatório do presidente Carlos Cavalcanti referente ao ano de 1916, que também anuncia, junto ao balanço de sua gestão, que “o Passeio Público está passando por uma reforma radical quase terminada”.
No período entre os anos de 1915 e 1920, a situação financeira do Paraná a princípio deficiente mergulhou numa crise profunda.
"Deflagrada a Primeira Guerra Mundial, o mate, principal produto de exportação paranaense esbarrou na falta de encomendas do mercado estrangeiro. A avalanche de falências dos muitos engenhos não dinamizou a pecuária que permanecia estagnada, restando à indústria madeireira a hegemonia na atividade produtiva. No ano de 1917, a população, desempregada ou sobrevivendo com reduzidos salários, reivindicava numa greve geral as reduções nos preços dos aluguéis e dos alimentos de primeira necessidade. Em 1918, a “Gripe Espanhola” atingiu Curitiba; contabilizou 384 óbitos e contaminou quase metade da população. Em 1919, pressionado, o Estado só pôde manter um serviço sanitário após auxílio federal que, reformado e devidamente aparelhado, preveniria a reincidência de possíveis epidemias na capital."
Em 1919, apesar do entorno do Passeio Público estar caótico, as obras seguem lentamente e, em 1920, o prefeito João Moreira Garcez (gestões de 1920 a 1928 e 1938 a 1940) conclui a totalidade das obras propostas por Cândido de Abreu, assumindo apenas o encargo de haver dado continuidade a uma obra projetada. As melhorias ali introduzidas, como os portões, o coreto, pontes, a rua de contorno, cercas, vegetação e demais obras projetadas pelo arquiteto Bouvard, têm como característica o eclético, com elementos art nouveau.
O portão é o destaque singular. Projetado por Bouvard, seu projeto remete ao Cimietière des Chiens, em Asniére-Sur-Seine, hoje desaparecido, com linhas elegantes e volteado com resquícios do art noveau, encimado por um arco, no qual se lê “Passeio Público”. Grutas, cascatas, relevos, pontes e cercas de falsa madeira ou pedra, rochedos e lagos artificial são elementos que transformam o Passeio em cenas idealizadas da natureza e, ao mesmo tempo, reafirmam certa ideia de jardim inglês. Neste estilo de jardim, é fundamental a utilização de gramados extensos, com amplas alamedas.
Esse período representou também a chegada de uma elite intelectual ao poder estadual, com o engenheiro Moreira Garcez na chefia da prefeitura e o médico Caetano Munhoz da Rocha liderando o governo estatal (gestões 1920-1924 e 1924-1928). Nesse momento, houve efetivamente um esforço de ambas as esferas em tornar Curitiba, uma “das bellas capitaes do Sul do Brazil”, sede do governo, espelho da capacidade, desenvolvimento, civilidade e modernidade do início do século XX. A mensagem com esse teor foi dirigida ao Congresso Legislativo no dia 1º de fevereiro de 1914:
"(...) foi nessa segunda década do século XX que o poder estatal se mostrou claramente decidido a se responsabilizar pelas intervenções na cidade. De outra maneira, foi nesses anos que os “problemas urbanos” se tornaram, efetivamente, um problema para ser assumido pelo Estado. Levou-se tão a sério a ambição por tornar Curitiba uma “das bellas capitaes do Sul do Brazil” que enormes somas foram destinadas aos “melhoramentos da capital”, ao ponto de, como se viu, usar-se deste pretexto para tomar atitudes ilícitas em relação à Fazenda Pública. Nota-se, portanto, uma mudança um tanto radical na política do governo estadual. Enquanto a primeira década do século XX se caracterizou pela relativa morosidade deste diante das demandas urbanísticas da capital, a segunda se notabilizou por seu “despertamento” para os “problemas” da cidade-sede do poder público."
Nessa parceria entre Governo e Prefeitura, tivemos o planejamento e a implantação de vários programas que beneficiaram a saúde e o bem-estar da população da capital, como a instalação adequada de uma rede de esgotos, a remodelação e ampliação do sistema de captação e distribuição de água que abastecia a cidade, reivindicações essas que remontam aos anos anteriores.
Para execução desse empreendimento o governo convidou o engenheiro sanitarista Francisco Rodrigues Saturnino de Brito, que emitiu parecer sobre a situação e passou a projetar os melhoramentos necessários ao saneamento oferecido na Capital, mediante contrato. Para ampliação da captação d’água, Brito foi favorável em continuar utilizando os mananciais da Serra do Mar, o que já tivera início na administração passada. E em relação aos esgotos, o serviço foi restringido, visto que muitas ruas se achavam em projeto, mas que por ocasião de sua construção, seriam dotados desse melhoramento. Tal característica acompanhou os projetos executados por esse sanitarista. Saturnino de Brito incorporava à noção de plano a previsão do crescimento da cidade. (...) A concepção de plano preconizada por Brito propunha um traçado moderno que sobreposto à paisagem colonial apresentada pelas cidades brasileiras permitiria uma expansão racional em seus espaços.
Saturnino de Brito (1864-1929) concebia a cidade como um sistema onde era essencial a visão clara de conjunto. Nos seus “Planos Gerais” (complementado pelos “Planos de Conjunto” que representam sua metodologia de planejamento, que prezava pela unidade de concepção em todas as dimensões, sejam elas projetual, técnica, administrativa ou política) para as cidades, pode-se observar os elementos de composição da paisagem: o traçado obedecendo à topografia do sítio, hidrografia e vegetação. Os parques e jardins tinham função de embelezamento, saneamento, mas também de estruturadores do espaço urbano.
Temos, porém, uma segunda opinião interessante que envolve uma maior valorização do Plano Agache em detrimento dos projetos propostos por Saturnino de Brito anteriormente. Irã Dudeque, historiador e pesquisador do tema, afirma que as recomendações técnicas de Saturnino de Brito ficaram esquecidas por muito tempo. Isso porque as obras estavam enterradas sob o solo ou distantes do núcleo urbano. Segundo Affonso Alves de Camargo, na época em que era governador (1916-1920), o projeto determinara a proteção das zonas de mananciais de águas para evitar a “devastação das matas ali existentes.” O que intriga Dudeque é o fato de muitos apontarem o Plano Agache (da década de 1940) como o primeiro plano de saneamento básico da cidade. “Já existiam obras feitas baseadas no projeto de Saturnino, com algumas adaptações porque a cidade crescia”.
Os princípios higienistas que orientam tais planos urbanos afetam o comportamento social também, pois havia a necessidade de transformar velhos hábitos em novos, atuando em remodelados espaços públicos, em novas cenografias de “estar-junto”, ou seja, civilizar as sociabilidades. Podemos perceber tal reorientação na figura 2.
O Passeio Público, desde sua inauguração até a metade dos anos 1910, pode ser considerado como um elemento significativo das propostas urbanas implementadas nesse período e indicador de uma nova estética urbana, aliando natureza domesticada e soluções às enchentes dos rios Belém e Ivo. No entanto, a falta de estrutura municipal, juntamente com a escassez de recursos financeiros específicos para sua manutenção, relegou-o ao abandono, embora não totalmente, mas em vários momentos, por parte da população curitibana. Ressalta-se que as intervenções significativas, executadas durante a administração de Cândido de Abreu, na desapropriação de terrenos próximos e na reorganização do espaço, foram insuficientes para vencer os problemas estruturais daquele momento.
Um dado nos chama a atenção: na ficha catalográfica temos uma informação, reproduzida por F. [Francisco] Kava, que consta na Coleção Claudio Macedo Lopes e nos traz mais dados, como a data de entrada do documento, em 2 de abril de 1975.
Aqui temos uma situação muito interessante. Francisco Kava Sobrinho (1935-1985), fotógrafo e ambientalista curitibano, após a experiência com o fotojornalismo, na década de 1960, em parceria com o fotógrafo Jesus Santoro, abre o estúdio Prisma Realizações Ltda., local onde ambos trabalhavam com fotografias publicitárias e de acompanhamento de obras públicas locais. No início da década de 1970, os fotógrafos fecharam o estúdio Prisma Realizações, e Kava continuou na fotografia publicitária, abrindo o estúdio fotográfico Foto Panorama, em 1975.
Araújo nos informa outro dado importante sobre Kava Sobrinho: “Também contribui de maneira significativa com a FCC [Fundação Cultural de Curitiba] na realização e recuperação de fotografias, principalmente para a Casa da Memória”, sem especificar o período de atuação ou seu papel para tanto: se contratado ou de forma voluntária. Essa informação é extremamente pertinente para pensarmos os trânsitos culturais de determinadas imagens e os circuitos de gestão das memórias relativas à Curitiba.
A Fundação Cultural de Curitiba foi criada em 1973 com a tarefa de “formular a política cultural do Município”, em articulação com órgãos afins de qualquer esfera de poder, e de promover a defesa do patrimônio histórico e artístico da cidade.
A Casa Romário Martins, inaugurada em 1973, passou a sediar o primeiro núcleo voltado à preservação da memória de Curitiba, base inicial da Casa da Memória e da Diretoria de Patrimônio Cultural do município. Desde a inauguração da Casa da Memória, em 1981, a Casa Romário Martins é utilizada como espaço de exposição ligado à história e aos fatos culturais de Curitiba.
Funciona como um centro de informações sobre a cidade, sua história, sua gente, suas coisas, encaminhando às verdadeiras fontes o visitante e o próprio curitibano, divulgando esse trabalho através de exposições periódicas e criando um ponto de encontro de pessoas ligadas a história e à cultura de Curitiba. Abriga também o Arquivo Histórico do Município, em caráter provisório, visto que o material coletado (documentos escritos, gravados, fotos e filmes antigos) ainda não se apresenta em grande volume, pois o trabalho de pesquisa foi iniciado há pouco tempo.
Na busca pela constituição desse novo acervo para a Fundação Cultural, as memórias de funcionários ainda atuantes no Museu Paranaense indicam a década de 1980 como a de presença de Kava na instituição, para a reprodução do acervo fotográfico em sistema de permuta. Não há registro de trabalhos específicos de Kava para o Museu, e sim de sua presença na reprodução de diversas imagens. Entretanto, mesmo que a memória desses agentes reporte a 1980, é mais factível constatar a atuação de Kava em 1975, conforme as fichas de catalogação e o contexto de organização de acervo da Fundação Cultural.
Essas aproximações e distanciamentos conforme os interesses políticos no âmbito municipal e estadual nos levam a pensar não somente o formato, mas os sentidos propostos por instituições distintas para a guarda e organização das memórias sobre Curitiba.
As memórias organizadas pela Casa de Memória, a preservação das características e identidade da cidade e sua constante reafirmação sedimentam em camadas (imagéticas, orais, arquitetônicas, materiais, documentais) uma ideia de Curitiba: de pequena vila a moderna capital, com planejamento urbano de ponta, grande afluxo migratório europeu e pioneira em questões de preservação ambiental, uma capital verde. O objetivo de “encaminhando às verdadeiras fontes o visitante e o próprio curitibano” nos faz refletir qual o sentido dado ‘às verdadeiras fontes” e sua pertinência no acervo de tal instituição.
Por outro lado, o Museu Paranaense, ao se sustentar em um espaço para a construção de uma memória e ideia do Paraná, enquanto estado, enquanto entidade personificada em elementos - como força, natureza, imigração, desenvolvimento e modernidade - fraciona e projeta a imagem/imaginário de sua capital como moderna e pujante, com planos de reformas urbanas adequadas ou, além de seu próprio tempo, cidade-sede do poder administrativo que espelharia o dinamismo do Paraná.
Podemos considerar que, na reacomodação das estruturas estatais e municipais, tenhamos um quadro de disputas simbólicas, no qual grupos políticos distintos se apropriam da (e ao mesmo tempo permutam a) construção de imaginários. Ao alimentar tal circulação, muitas imagens escapam desse circuito e apresentam olhares peculiares, pois as fotografias, várias inéditas, constantes no acervo fotográfico do Museu Paranaense em sua divulgação, apresentam imagens de Curitiba enquadradas, modeladas com o olhar de seu tempo, muitas em perspectivas diferenciadas, mas que capturam e registram instantes precisos e transitórios de transformação de uma sociedade e sua cidade, como no caso da figura 2, apresentada na próxima seção.
A década de 1920 e as ações de Bouvard e Saturnino Brito: lentidão, civilização e o footing no Passeio:
"É encantadoramente lindo. Os inúmeros canais que tanto prejudicavam sempre a conservação do nosso jardim botânico são suprimidos; apenas o curso natural do rio Belém o recortará convenientemente, e dará a água necessária a um grande tanque de natação, cimentado e pitorescamente localizado. (...) O projeto, quanto à sua arquitetura, é indescritível. É um verdadeiro torneio de desenho, de encantador efeito, que uma vez executado muito recomendará a nossa cidade, constituindo mesmo o clou [prego] dos atuais trabalhos de embelezamento."
Com essa reportagem, o jornal A República, em sua edição de 30 de julho de 1915, anuncia o plano de modificações do Passeio Público, proposto pelo arquiteto contratado Joseph Antoine Bouvard (1840-1920) que, como credencial de trabalho, apresenta a remodelação do Palais de Luxembourg, adaptando-o para ser sede do governo de Versailles, e também outras grandes obras de projetos urbanísticos em exposições, festas públicas e embelezamento urbano na França.
Os relatórios de gestão de Cândido de Abreu do ano de 1915 concluem que “a reforma do Passeio Público, em moldes modestos, está em andamento”, fato reafirmado pelo Relatório do presidente Carlos Cavalcanti referente ao ano de 1916, que também anuncia, junto ao balanço de sua gestão, que “o Passeio Público está passando por uma reforma radical quase terminada”.
No período entre os anos de 1915 e 1920, a situação financeira do Paraná a princípio deficiente mergulhou numa crise profunda.
"Deflagrada a Primeira Guerra Mundial, o mate, principal produto de exportação paranaense esbarrou na falta de encomendas do mercado estrangeiro. A avalanche de falências dos muitos engenhos não dinamizou a pecuária que permanecia estagnada, restando à indústria madeireira a hegemonia na atividade produtiva. No ano de 1917, a população, desempregada ou sobrevivendo com reduzidos salários, reivindicava numa greve geral as reduções nos preços dos aluguéis e dos alimentos de primeira necessidade. Em 1918, a “Gripe Espanhola” atingiu Curitiba; contabilizou 384 óbitos e contaminou quase metade da população. Em 1919, pressionado, o Estado só pôde manter um serviço sanitário após auxílio federal que, reformado e devidamente aparelhado, preveniria a reincidência de possíveis epidemias na capital."
Em 1919, apesar do entorno do Passeio Público estar caótico, as obras seguem lentamente e, em 1920, o prefeito João Moreira Garcez (gestões de 1920 a 1928 e 1938 a 1940) conclui a totalidade das obras propostas por Cândido de Abreu, assumindo apenas o encargo de haver dado continuidade a uma obra projetada. As melhorias ali introduzidas, como os portões, o coreto, pontes, a rua de contorno, cercas, vegetação e demais obras projetadas pelo arquiteto Bouvard, têm como característica o eclético, com elementos art nouveau.
O portão é o destaque singular. Projetado por Bouvard, seu projeto remete ao Cimietière des Chiens, em Asniére-Sur-Seine, hoje desaparecido, com linhas elegantes e volteado com resquícios do art noveau, encimado por um arco, no qual se lê “Passeio Público”. Grutas, cascatas, relevos, pontes e cercas de falsa madeira ou pedra, rochedos e lagos artificial são elementos que transformam o Passeio em cenas idealizadas da natureza e, ao mesmo tempo, reafirmam certa ideia de jardim inglês. Neste estilo de jardim, é fundamental a utilização de gramados extensos, com amplas alamedas.
Esse período representou também a chegada de uma elite intelectual ao poder estadual, com o engenheiro Moreira Garcez na chefia da prefeitura e o médico Caetano Munhoz da Rocha liderando o governo estatal (gestões 1920-1924 e 1924-1928). Nesse momento, houve efetivamente um esforço de ambas as esferas em tornar Curitiba, uma “das bellas capitaes do Sul do Brazil”, sede do governo, espelho da capacidade, desenvolvimento, civilidade e modernidade do início do século XX. A mensagem com esse teor foi dirigida ao Congresso Legislativo no dia 1º de fevereiro de 1914:
"(...) foi nessa segunda década do século XX que o poder estatal se mostrou claramente decidido a se responsabilizar pelas intervenções na cidade. De outra maneira, foi nesses anos que os “problemas urbanos” se tornaram, efetivamente, um problema para ser assumido pelo Estado. Levou-se tão a sério a ambição por tornar Curitiba uma “das bellas capitaes do Sul do Brazil” que enormes somas foram destinadas aos “melhoramentos da capital”, ao ponto de, como se viu, usar-se deste pretexto para tomar atitudes ilícitas em relação à Fazenda Pública. Nota-se, portanto, uma mudança um tanto radical na política do governo estadual. Enquanto a primeira década do século XX se caracterizou pela relativa morosidade deste diante das demandas urbanísticas da capital, a segunda se notabilizou por seu “despertamento” para os “problemas” da cidade-sede do poder público."
Nessa parceria entre Governo e Prefeitura, tivemos o planejamento e a implantação de vários programas que beneficiaram a saúde e o bem-estar da população da capital, como a instalação adequada de uma rede de esgotos, a remodelação e ampliação do sistema de captação e distribuição de água que abastecia a cidade, reivindicações essas que remontam aos anos anteriores.
Para execução desse empreendimento o governo convidou o engenheiro sanitarista Francisco Rodrigues Saturnino de Brito, que emitiu parecer sobre a situação e passou a projetar os melhoramentos necessários ao saneamento oferecido na Capital, mediante contrato. Para ampliação da captação d’água, Brito foi favorável em continuar utilizando os mananciais da Serra do Mar, o que já tivera início na administração passada. E em relação aos esgotos, o serviço foi restringido, visto que muitas ruas se achavam em projeto, mas que por ocasião de sua construção, seriam dotados desse melhoramento. Tal característica acompanhou os projetos executados por esse sanitarista. Saturnino de Brito incorporava à noção de plano a previsão do crescimento da cidade. (...) A concepção de plano preconizada por Brito propunha um traçado moderno que sobreposto à paisagem colonial apresentada pelas cidades brasileiras permitiria uma expansão racional em seus espaços.
Saturnino de Brito (1864-1929) concebia a cidade como um sistema onde era essencial a visão clara de conjunto. Nos seus “Planos Gerais” (complementado pelos “Planos de Conjunto” que representam sua metodologia de planejamento, que prezava pela unidade de concepção em todas as dimensões, sejam elas projetual, técnica, administrativa ou política) para as cidades, pode-se observar os elementos de composição da paisagem: o traçado obedecendo à topografia do sítio, hidrografia e vegetação. Os parques e jardins tinham função de embelezamento, saneamento, mas também de estruturadores do espaço urbano.
Temos, porém, uma segunda opinião interessante que envolve uma maior valorização do Plano Agache em detrimento dos projetos propostos por Saturnino de Brito anteriormente. Irã Dudeque, historiador e pesquisador do tema, afirma que as recomendações técnicas de Saturnino de Brito ficaram esquecidas por muito tempo. Isso porque as obras estavam enterradas sob o solo ou distantes do núcleo urbano. Segundo Affonso Alves de Camargo, na época em que era governador (1916-1920), o projeto determinara a proteção das zonas de mananciais de águas para evitar a “devastação das matas ali existentes.” O que intriga Dudeque é o fato de muitos apontarem o Plano Agache (da década de 1940) como o primeiro plano de saneamento básico da cidade. “Já existiam obras feitas baseadas no projeto de Saturnino, com algumas adaptações porque a cidade crescia”.
Os princípios higienistas que orientam tais planos urbanos afetam o comportamento social também, pois havia a necessidade de transformar velhos hábitos em novos, atuando em remodelados espaços públicos, em novas cenografias de “estar-junto”, ou seja, civilizar as sociabilidades. Podemos perceber tal reorientação na figura 2.
A fotografia, com uma moldura branca e cortada abruptamente à esquerda (podemos perceber um pedaço de casaco feminino), nos apresenta uma vista do Passeio Público e o público usufruindo do seu espaço, em data indicada na legenda como provavelmente 1925, salientando a iluminação do lado esquerdo como efetivada em 1920.
Desmontando a imagem, podemos perceber, ao fundo, acompanhando um semicírculo da direita para a esquerda, árvores que compõem uma massa visual de enquadramento. À frente e à direita, temos uma pequena praça circular rodeada por cerca e bancos, onde se dispõem pessoas, tanto agrupamentos masculinos quanto, inferimos, de famílias. Tal círculo rodeia um gramado e em desenhos radiais comportam outras árvores, tendo uma central.
Os agrupamentos de pessoas são compostos de grupos diversos: famílias (pais, mães e filhos); somente moças; jovens meninas e senhora; jovens rapazes apoiados na cerca observando o movimento; jovens militares fardados em folga.
Aproximando o olhar para alguns grupos, percebemos à esquerda, no banco do poste de iluminação, uma família composta por pai, mãe, avô, três filhos e um bebê de colo olhando em direção ao centro. Ao centro e ao fundo, temos senhoritas com chapéus e com a cabeça descoberta, olhando o vai e vem das pessoas.
À direita, nos bancos que ladeiam o círculo de árvores e o maior conjunto visual da fotografia, temos grupos familiares em várias composições observando um agrupamento de homens que, pela postura e formato do ajuntamento, parecem investigar algo. Ainda circundando o gradil, temos um homem e uma criança portando chapéus e pela tonalidade da pele são negros.
O primeiro grupo, na parte inferior do centro para esquerda, apresenta duas jovens e um rapaz com várias possibilidades de interpretação: duas irmãs ou duas amigas com os braços enlaçados, em companhia de um possível namorado ou mesmo um amigo, pois não era de bom tom moças de boas famílias saírem para passear desacompanhadas, conforme as normas de etiqueta e de comportamento exigiam.
Esta fotografia apresenta também três homens sentados no círculo que rodeia o gradil descrito. Eles olham diretamente para a câmara: da esquerda para a direita, o primeiro está com braços e pernas cruzadas, o chapéu enterrado sombreia o rosto; o segundo, com pernas abertas, vestes claras e sem chapéu, adota uma postura mais relaxada; o terceiro nos chama atenção, pois encara o fotógrafo e estende o braço direito indicando ou apresentando o footing, está com pernas cruzadas e o chapéu apoiado nelas. Seu olhar é direto, a cabeça está inclinada e podemos vislumbrar um meio sorriso. O quarto homem, que completa o conjunto, tem as pernas cruzadas e olha em direção oposta.
Pelos trajes envergados por homens, mulheres, crianças e jovens percebemos as distintas camadas sociais que apreciam e usufruem do espaço do Passeio. Homens portando bengalas eram sinônimos de elegância e muitas mulheres não saiam à rua se não estivessem enchapeladas, já que era sinal de falta de educação e mesmo desleixo. Os figurinos, para a classe mais abastada, seguiam as revistas de moda importadas que ficavam nos ateliês de alta costura. O ver e ser visto era essencial tanto para firmar o próprio lugar social quanto para estabelecer relações entre as pessoas, e o espaço de trânsito proporcionado pelo Passeio Público seria o ideal, atendendo às normas de bem proceder da época.
Sobre a iluminação e o poste, ao lado esquerdo, lembramos que a eletricidade ou a fada eletricidade, como denominada na Exposição Universal de Paris, em 1900, de surgimento muito próximo temporalmente, remete não somente à magia, mas à civilização e à modernidade, sendo vista como indicador de avanço técnico, progresso e racionalidade. Lembramos que, em 1887, o Passeio Público já possuía instalações de luz elétrica e, em 1912, circulavam na cidade bondes elétricos.
A ficha catalográfica da fotografia nos indica que foi doada pela Família Blasi, em 1970, sem mencionar a autoria do fotógrafo.
Podemos supor a possibilidade de que a doação de várias peças e documentos ao acervo do Museu Paranaense tenham sido feita por Oldemar Blasi, diretor da instituição entre 1967 e 1983 e que disponibilizou parte do arquivo de sua família para esse espaço de memória.
Considerações finais:
Susan Sontag nos diz que:
"Todas as fotos sãomemento mori. Tirar uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Precisamente por cortar uma fatia deste momento e congelá-lo, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo (…). A fotografia é simultaneamente uma pseudo-presença e um sinal de ausência."
Ao recortar e congelar essa fatia de tempo, a fotografia nos impele a pensar acerca das transformações vivenciadas pelos espaços e pelas pessoas que por eles circulam, o que está inscrito em sua pele e aquilo que podemos inferir a partir de seus sinais.
As fotografias constantes no acervo do Museu Paranaense merecem outras tantas perguntas e também serem re-olhadas sob outras perspectivas, seja pela riqueza de informações que apresentam, seja pelo ineditismo que ainda possuem, seja pelas lacunas que estão silenciadas.
As reproduções ou os originais em preto e branco evocam o “saudosismo” de tempos mais felizes ou pretensamente menos belicosos e sua textura, muitas vezes mais nítida, proporciona uma maior atenção, não perceptível em fotos coloridas.
Na seleção apresentada neste texto, podemos perceber as múltiplas possibilidades de olhares sobre uma cidade que se percebe como moderna e imprime afetiva e esteticamente outros lugares de encontro na escolha de uma imagem que expresse um vínculo aninhante, um elo de pertença.
Isso não significa, porém, que essa cidade seja somente acolhedora e não possua conturbações, exclusões ou conflitos sociais. Significa que muitas instituições, pessoas e lugares elegem sua imagem ideal, organizada, limpa e moderna em um círculo de memórias e imaginários em constante reelaboração e em diferentes circuitos culturais.
As administrações municipais e estaduais construíram, ao longo do tempo, como meio e como mídia, a imagem de sua cidade-sede em uma pluralidade de fragmentos através de seu traçado, projetado por especialistas ou remarcados pela população, seus lugares de sociabilidades e interações, divulgados em cartões postais perdidos em arquivos familiares, depositários de outras memórias em que alguns se encontram no acervo do Museu Paranaense a espera de novas indagações.
O Passeio Público foi por muito tempo e ainda é hoje, no imaginário curitibano, um espaço de pausa em meio à agitação cotidiana, onde pontes e aleias, que projetam ares de repouso em gramados de gramática europeia, atraem seus cidadãos, os turistas e os viajantes de vários recantos e rincões que ali aportam atraídos por seus postais e retratos.
As sociabilidades que ali se espreitaram e se entrelaçaram em registros visuais nos apontam a decomposição de cenários urbanos, as assimetrias sociais e culturais estabelecidas, as convenções de bem se relacionar em espaços públicos e as reacomodações realizadas em meio às transformações econômicas e políticas que marcaram as três primeiras décadas do século XX.
Apontam também para o circuito das imagens que desaguaram no Museu Paranaense - enquanto fragmentos de memórias visuais - como elemento essencial na criação de novas imagens urbanas, o que engendrou, entre outros, o imaginário urbano moderno de Curitiba e a circulação de imagens-memorialísticas pela Fundação Cultural dessa cidade.
Ao Passeio, pois!!!
Os agrupamentos de pessoas são compostos de grupos diversos: famílias (pais, mães e filhos); somente moças; jovens meninas e senhora; jovens rapazes apoiados na cerca observando o movimento; jovens militares fardados em folga.
Aproximando o olhar para alguns grupos, percebemos à esquerda, no banco do poste de iluminação, uma família composta por pai, mãe, avô, três filhos e um bebê de colo olhando em direção ao centro. Ao centro e ao fundo, temos senhoritas com chapéus e com a cabeça descoberta, olhando o vai e vem das pessoas.
À direita, nos bancos que ladeiam o círculo de árvores e o maior conjunto visual da fotografia, temos grupos familiares em várias composições observando um agrupamento de homens que, pela postura e formato do ajuntamento, parecem investigar algo. Ainda circundando o gradil, temos um homem e uma criança portando chapéus e pela tonalidade da pele são negros.
O primeiro grupo, na parte inferior do centro para esquerda, apresenta duas jovens e um rapaz com várias possibilidades de interpretação: duas irmãs ou duas amigas com os braços enlaçados, em companhia de um possível namorado ou mesmo um amigo, pois não era de bom tom moças de boas famílias saírem para passear desacompanhadas, conforme as normas de etiqueta e de comportamento exigiam.
Esta fotografia apresenta também três homens sentados no círculo que rodeia o gradil descrito. Eles olham diretamente para a câmara: da esquerda para a direita, o primeiro está com braços e pernas cruzadas, o chapéu enterrado sombreia o rosto; o segundo, com pernas abertas, vestes claras e sem chapéu, adota uma postura mais relaxada; o terceiro nos chama atenção, pois encara o fotógrafo e estende o braço direito indicando ou apresentando o footing, está com pernas cruzadas e o chapéu apoiado nelas. Seu olhar é direto, a cabeça está inclinada e podemos vislumbrar um meio sorriso. O quarto homem, que completa o conjunto, tem as pernas cruzadas e olha em direção oposta.
Pelos trajes envergados por homens, mulheres, crianças e jovens percebemos as distintas camadas sociais que apreciam e usufruem do espaço do Passeio. Homens portando bengalas eram sinônimos de elegância e muitas mulheres não saiam à rua se não estivessem enchapeladas, já que era sinal de falta de educação e mesmo desleixo. Os figurinos, para a classe mais abastada, seguiam as revistas de moda importadas que ficavam nos ateliês de alta costura. O ver e ser visto era essencial tanto para firmar o próprio lugar social quanto para estabelecer relações entre as pessoas, e o espaço de trânsito proporcionado pelo Passeio Público seria o ideal, atendendo às normas de bem proceder da época.
Sobre a iluminação e o poste, ao lado esquerdo, lembramos que a eletricidade ou a fada eletricidade, como denominada na Exposição Universal de Paris, em 1900, de surgimento muito próximo temporalmente, remete não somente à magia, mas à civilização e à modernidade, sendo vista como indicador de avanço técnico, progresso e racionalidade. Lembramos que, em 1887, o Passeio Público já possuía instalações de luz elétrica e, em 1912, circulavam na cidade bondes elétricos.
A ficha catalográfica da fotografia nos indica que foi doada pela Família Blasi, em 1970, sem mencionar a autoria do fotógrafo.
Podemos supor a possibilidade de que a doação de várias peças e documentos ao acervo do Museu Paranaense tenham sido feita por Oldemar Blasi, diretor da instituição entre 1967 e 1983 e que disponibilizou parte do arquivo de sua família para esse espaço de memória.
Considerações finais:
Susan Sontag nos diz que:
"Todas as fotos sãomemento mori. Tirar uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Precisamente por cortar uma fatia deste momento e congelá-lo, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo (…). A fotografia é simultaneamente uma pseudo-presença e um sinal de ausência."
Ao recortar e congelar essa fatia de tempo, a fotografia nos impele a pensar acerca das transformações vivenciadas pelos espaços e pelas pessoas que por eles circulam, o que está inscrito em sua pele e aquilo que podemos inferir a partir de seus sinais.
As fotografias constantes no acervo do Museu Paranaense merecem outras tantas perguntas e também serem re-olhadas sob outras perspectivas, seja pela riqueza de informações que apresentam, seja pelo ineditismo que ainda possuem, seja pelas lacunas que estão silenciadas.
As reproduções ou os originais em preto e branco evocam o “saudosismo” de tempos mais felizes ou pretensamente menos belicosos e sua textura, muitas vezes mais nítida, proporciona uma maior atenção, não perceptível em fotos coloridas.
Na seleção apresentada neste texto, podemos perceber as múltiplas possibilidades de olhares sobre uma cidade que se percebe como moderna e imprime afetiva e esteticamente outros lugares de encontro na escolha de uma imagem que expresse um vínculo aninhante, um elo de pertença.
Isso não significa, porém, que essa cidade seja somente acolhedora e não possua conturbações, exclusões ou conflitos sociais. Significa que muitas instituições, pessoas e lugares elegem sua imagem ideal, organizada, limpa e moderna em um círculo de memórias e imaginários em constante reelaboração e em diferentes circuitos culturais.
As administrações municipais e estaduais construíram, ao longo do tempo, como meio e como mídia, a imagem de sua cidade-sede em uma pluralidade de fragmentos através de seu traçado, projetado por especialistas ou remarcados pela população, seus lugares de sociabilidades e interações, divulgados em cartões postais perdidos em arquivos familiares, depositários de outras memórias em que alguns se encontram no acervo do Museu Paranaense a espera de novas indagações.
O Passeio Público foi por muito tempo e ainda é hoje, no imaginário curitibano, um espaço de pausa em meio à agitação cotidiana, onde pontes e aleias, que projetam ares de repouso em gramados de gramática europeia, atraem seus cidadãos, os turistas e os viajantes de vários recantos e rincões que ali aportam atraídos por seus postais e retratos.
As sociabilidades que ali se espreitaram e se entrelaçaram em registros visuais nos apontam a decomposição de cenários urbanos, as assimetrias sociais e culturais estabelecidas, as convenções de bem se relacionar em espaços públicos e as reacomodações realizadas em meio às transformações econômicas e políticas que marcaram as três primeiras décadas do século XX.
Apontam também para o circuito das imagens que desaguaram no Museu Paranaense - enquanto fragmentos de memórias visuais - como elemento essencial na criação de novas imagens urbanas, o que engendrou, entre outros, o imaginário urbano moderno de Curitiba e a circulação de imagens-memorialísticas pela Fundação Cultural dessa cidade.
Ao Passeio, pois!!!
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