Piso de Caquinhos, Brasil
Brasil
Pode algo quebrado valer mais que a peça
inteira? Aparentemente não. Pela primeira vez na história da humanidade contamos
esse mistério. Foi entre as décadas de 40 e 50 do século passado. Voltemos a
esse tempo. A cidade de São Paulo era servida por duas indústrias cerâmicas
principais. Um dos produtos dessas cerâmicas era um tipo de lajota cerâmica
quadrada (algo como 20×20 cm) composta por quatro quadrados iguais. Essas
lajotas eram produzidas nas cores vermelha (a mais comum e mais barata),
amarela e preta.
Era usada para piso de residências de classe
média ou comércio. No processo industrial da época, sem maiores preocupações
com qualidade, aconteciam muitas quebras e esse material quebrado sem interesse
econômico era juntado e enterrado em grandes buracos. Nessa época os chamados
lotes operários na Grande São Paulo ou eram de 10×30 m ou, no mínimo, 8×25 m;
ou seja, eram lotes com área para jardim e quintal – jardins e quintais
revestidos até então com cimentado, com sua monótona cor cinza. Mas os
operários não tinham dinheiro para comprar lajotas cerâmicas, que eles mesmos
produziam, e com isso cimentar era a regra.
Um dia, um dos empregados de uma das
cerâmicas e que estava terminando sua casa, não tinha dinheiro para comprar o
cimento para cimentar todo o seu terreno e lembrou-se do refugo da fábrica –
caminhões e caminhões por dia que levavam esse refugo para ser enterrado num
terreno abandonado perto da fábrica. O empregado pediu que ele pudesse recolher
parte do refugo e usar na pavimentação do terreno de sua nova casa.
Claro que a cerâmica topou na hora e ainda
deu o transporte de graça, pois com o uso do refugo deixava de gastar dinheiro
com a disposição. Agora a história começa a mudar por uma coisa linda que se
chama arte. A maior parte do refugo recebida pelo empregado era de cacos
cerâmicos vermelhos, mas havia cacos amarelos e pretos também. O operário ao assentar os
cacos cerâmicos fez inserir aqui e ali cacos pretos e amarelos quebrando a
monotonia do vermelho contínuo.
É… a entrada da casa do simples operário
ficou bonitinha e gerou comentários dos vizinhos também trabalhadores da
fábrica. Aí o assunto pegou fogo e todos começaram a pedir caquinhos, o que a
cerâmica adorou, pois parte – pequena é verdade – do seu refugo começou a ter
uso e sua disposição ser menos onerosa. Mas o belo é contagiante e a solução
começou a virar moda em geral e até jornais noticiavam a nova mania paulistana.
A classe média adotou a solução do caquinho cerâmico vermelho com inclusões
pretas e amarelas. Como a procura começou a crescer, a diretoria comercial de
uma das cerâmicas, descobriu ali uma fonte de renda e passou a vender, a preços
módicos é claro, pois refugo é refugo, os cacos cerâmicos.
O preço do metro quadrado do caquinho
cerâmico era da ordem de 30% do caco íntegro (caco de boa família). Até aqui
está historieta é racional e lógica, pois refugo é refugo e material principal
é material principal. Mas não contaram isso para os paulistanos e a onda do
caquinho cerâmico cresceu e cresceu e cresceu e – acredite quem quiser –
começou a faltar caquinho cerâmico que começou a ser tão valioso como a peça
íntegra e impoluta.
Ah, o mercado com suas leis
ilógicas, mas implacáveis… Aconteceu o inacreditável. Na falta de caco as peças
inteiras começaram a ser quebradas pela própria cerâmica. E é claro que os
caquinhos subiram de preço, ou seja, o metro quadrado do refugo era mais caro
que o metro quadrado da peça inteira… A desculpa para o irracional (!) era o
custo industrial da operação de quebra, embora ninguém tenha descontado desse
custo a perda industrial que gerara o problema, ou melhor, que gerara a febre
do caquinho cerâmico. De um produto economicamente negativo passou a um produto
sem valor comercial, depois a um produto com algum valor comercial, até ao
refugo valer mais que o produto original de boa família…
A história termina nos anos 1960 com o
surgimento dos prédios em condomínio e a classe média que usava esse caquinho
foi para esses prédios e a classe mais simples ou passou a ter lotes menores
(4×15 m) ou foi morar em favelas. A solução do caquinho deixou de ser uma
solução altamente valorizada. São histórias da vida que precisam ser contadas
para no mínimo se dizer: – A arte cria o belo, e o marketing tenta explicar o
mistério da peça quebrada valer mais que a peça inteira…
Nota: um filósofo da construção civil
confessou-me: – Existe outro produto que quebrado vale mais que a peça inteira
por quilo. É a areia que vem da quebra da pedra. A areia fina é vendida mais
cara que a areia grossa.Fonte : http://www.brasilengenharia.com/portal/images/stories/revistas/edicao614/614_cronica.pdf
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