Continental Films, Paris, França
Paris - França
Artigo
Estamos no
início da década de 40 do século XX, a França encontra-se sob ocupação alemã e
o governo francês está exilado em Vichy por essa época.
O panorama
cinematográfico francês nos anos 40 estava estagnado, atravessava um período de
crise, com muitos estúdios a fechar e a mobilização em torno da guerra era
geral. Grandes nomes como Renoir tinham sido forçados ao exílio devido à
ocupação nazi, contudo, uma certa crise económica vinha já de trás, de finais
da década de 30 mas, ainda assim, a França era uma das maiores indústrias de
cinema europeias.
É por isso
importante para os alemães controlá-la e é assim que nasce a nova empresa de
produção, a Continental Films, uma produtora cinematográfica franco-alemã,
instalada em Paris em plena Ocupação. Paris era a cidade onde muitos soldados
alemães se deslocavam em licença em busca da diversão e do prazer. A
Continental era uma empresa de direito francês e capital alemão. Durante a sua
breve existência, entre 1940 e 45, a Continental Films produziu cerca de 30 filmes.
Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazi e das figuras mais próximas de
Hitler, nomeia para director da Continental, um alemão veterano da I Grande
Guerra e amigo de Göring, homem de negócios, já ligado à UFA - Universum Film
AG ( era o director de produção da UFA), francófilo e próximo do partido nazi,
um homem exigente, rico e megalómano, falamos de Alfred Greven.
A ideia de
Goebbels era fundamentalmente fazer dinheiro com a Continental Films,
produzindo filmes ligeiros, de entretenimento e comédias, captando o estrelato
francês para os filmes, aproveitando que a indústria francesa detinha a
distribuição pelos Países Baixos, pela própria França, Espanha, Itália, para
onde o cinema francês exportava. A Alemanha estava fora deste circuito, já que era
o cinema alemão que, na perspectiva dos nazis, devia ser o de conteúdo, como o
de carácter nacionalista. A propaganda estava também a cargo do cinema feito na
Alemanha e era o cinema produzido na Alemanha que devia permanecer como o
dominante, talvez por esse motivo, a Continental tivesse dificuldades de
financiamento, porque o capital era quase todo canalizado para a UFA. A
Continental fora criada com uma ideia de negócio e para entreter os territórios
ocupados com filmes puramente desprovidos de conteúdo e abrilhantados por
estrelas como Danielle Darrieux e Fernandel.
A Continental
tem uma história misteriosa e paradoxal e, por incrível que pareça, chega a
gozar duma liberdade que é, no mínimo, bizarra, dada a conjuntura
sócio-política daqueles anos, e os seus estúdios produziram filmes
vanguardistas e inovadores.
Não estava nos
planos de Alfred Greven seguir as orientações de Joseph Goebbels, que ao chegar
ao seu escritório nos Champs Elysées todas as manhãs, pendurava o sobretudo e o
chapéu de chuva no busto de Hitler.
Alfred Greven
é, como disse, um francófilo, e não tem dificuldade em fazer-se rodear dos
melhores e mais talentosos profissionais do cinema que se fazia em França,
desde argumentistas a realizadores, compositores a técnicos e actores e, para
isso, fazia uso dos seus métodos ora de sedução ora de chantagem, conforme a
situação. É o caso de Georges-Henri Clouzot que é convidado por Greven, que
admirava muito o seu trabalho de cenógrafo, a chefiar o departamento de
cenografia da produtora franco-alemã. Clouzot pôde mostrar o seu talento e a
partir daí, aproveitar a oportunidade para realizar nos estúdios da
Continental, duas das suas grandes obras: “Le Corbeau” e “L’Assassin Habite au
21”. Além disso, as pessoas precisavam mesmo de trabalhar ainda que, fazendo-o
para a Continental Films, lhes valesse o cliché de colaboracionistas, Clouzot
esteve vários anos impossibilitado de filmar depois da Libertação devido à sua
ligação à produtora franco-alemã. A verdade é que muitos acumulavam a actividade
de profissionais nos estúdios da Continental com a actividade clandestina na
Resistência, por exemplo.
A situação
daqueles tempos sombrios era complexa, porque havia muitos profissionais que
não conseguiam de todo trabalho durante a ocupação nazi e foram captados pelos
estúdios da produtora, tanto vedetas consagradas como jovens talentos que se
lançaram na Continental, e é neste aspecto que Alfred Greven teve um papel
verdadeiramente ambíguo. Fosse por ser um homem de negócios acima de tudo e
extremamente exigente, fosse por ser um conhecedor e amador da cultura
francesa, Greven fez -se rodear dos melhores e entre os melhores estão
evidentemente judeus e comunistas; alguns trabalharam clandestinamente na
Continental, sem créditos já que o seu nome jamais poderia ser publicitado ou
teriam de o substituir por pseudónimo ou nome falso, mas outros, pelo
contrário, tiveram um papel destacado, como foi o caso do paradigmático actor
Harry Baur que reunia todos os requisitos para ser persona non grata aos nazis:
era inglês, agente-duplo, comunista, judeu mas era uma estrela do teatro e
cinema franceses, um grande actor, uma figura incontornável da interpretação em
França. O seu desempenho brilhante como protagonista no filme “L’Assassinat du
Pére Noel”, o cativante Monsieur Cornusse que representa o homem bom e
sonhador, indignou os nazis: “Como era possível um judeu estrelar um filme
alemão?!”, na opinião do crítico e realizador Bertrand Tavernier, autor do
documentário sobre cinema em Paris durante a Ocupação - “Laissez Passer”,
poderia entender-se como um acto de provocação por parte de Harry Baur a sua
presença na Continental. Harry Baur viria a morrer devido a brutais maus tratos
na prisão às mãos da Gestapo. Há ainda outros casos de judeus como o do
compositor Roland Manuel (Levy) que criou música para filmes como “Inconnu dans
la Maison” ou do cineasta Raymond Bernard, assim como elementos da Resistência
e também russos trabalhavam para a Continental pois já eram profissionais da
indústria cinematográfica francesa e estavam em França desde a Revolução Russa.
Certo é que
Alfred Greven percebeu desde logo que tinha de fazer este jogo duplo se queria
tornar a Continental numa Hollywood europeia. Há aliás, um episódio curioso,
quando Greven tenta levar Jacques Prévert para a Continental, o que Prévert não
aceitou, mas terá dito a Greven que este jamais alcançaria o sucesso de
Hollywood porque a Continental não tinha judeus e eles eram os melhores. O que
Prévert desconhecia era que Alfred Greven já o tinha percebido e esse era o seu
segredo mais bem guardado.
Alfred Greven
queria acima de tudo produzir cinema de qualidade, e conseguiu-o com uma
independência notável, dadas as circunstâncias, quer em relação ao governo
alemão, quer em relação ao governo francês de Vichy e produziu filmes
transgressores e subversivos, no conteúdo e ou na forma.
Temos o
exemplo de “Le Corbeau” de Clouzot, um filme que não passaria na censura de
nenhum dos governos, pois para os alemães, o filme que retrata um vilarejo que
é contaminado por uma praga de cartas anónimas assinadas por um corvo que
delata os habitantes, fazendo pairar um clima de terror psicológico e
desconfiança entre os membros daquela comunidade, desencorajava a denúncia
anónima de que a Gestapo muito se alimentava e era, por isso, na perspectiva
dos alemães, um filme ao serviço de Vichy. Para outros era um filme
anti-francês, desde logo, o governo francês, conservador e católico, considerou
“Le Corbeau” um filme imoral que fala de questões malditas como o aborto e a
droga. Os comunistas e a resistência também não o viam com bons olhos pois era
produzido com dinheiro nazi. O certo é que, independentemente da ambivalência
do filme, que questiona de que lado está o bem e de que lado está o mal (onde
estão os bons e onde estão os maus), o que ele denuncia é a cegueira estúpida
das multidões que seguem sedentas e dominadas pela cólera, prontas a linchar o
primeiro que lhes apareça à frente e isto é uma impiedosa crítica social de que
Clouzot lança mão.
O filme “La
Symphonie Fantastique” de Christian-Jaque, é claramente uma exaltação da
França. Um filme sobre Berlioz, o patriotismo, em que entram personagens como
Victor Hugo, o que elevava a moral e auto-estima do país ocupado. Goebbels,
furioso, chama Greven a Berlim, depois de ver o filme, para lhe lembrar que a
Continental não devia jamais fazer filmes a enaltecer o nacionalismo francês,
que não era essa a sua função mas sim filmes comerciais, ligeiros, para fazer
adormecer o espectador.
A Continental
levou para o cinema obras da literatura francesa nos filmes de André Cayatte
“Au Bonheur Des Dames”, adaptada dum romance de Émile Zola; “La Fausse
Maîtresse” a partir da obra de Balzac e “Pierre et Jean” da de Guy de
Maupassant; ou “la Main du Diable” realizado por Maurice Tourneur, inspirado
numa novela do escritor e poeta francês Gérard de Nerval; “L’Assassinat du Pére
Noel” de Christian-Jaque a partir do romance de Pierre Véry; “Les Caves du
Majestic” realizado por Richard Pottier a partir do romance de Georges Simenon,
o que confirma a densidade e independência do cinema que se fez nos estúdios
dirigidos por Greven.
Por outro
lado, o filme de Maurice Touneur, “La Main du Diable”, é bastante original
porque subverte a fórmula do suspense: os momentos de maior perigo e tensão são
precedidos de cenas cheias de gente, confusão e barulho (a cena inicial do
jantar na estalagem ou a da vernissage), ao vermos a frenética e confusa
movimentação da multidão sabemos que algo vai acontecer, ao contrário da
fórmula habitual em que é o silêncio, as sombras, a solidão que anunciam o
momento de revelação do perigo.
A Continental
Films tal como a figura enigmática de Alfred Greven estiveram envoltas numa
névoa de mistério que ultimamente tem vindo a ser dissipada graças ao trabalho
de historiadores e críticos de cinema, cineastas e investigadores
contemporâneos.
Os filmes dos
estúdios da Continental não colhiam a simpatia da geração da Nouvelle Vague e
Cahiers du Cinema por exemplo, e acabaram por ficar exilados no território do
esquecimento pelas gerações que se seguiram à Libertação da França e ao fim da
II Guerra.
Foi
absolutamente fundamental ter distância para se escrever a História e ter a
coragem e curiosidade para investigar os arquivos da empresa e a produção
cinematográfica financiada com dinheiro do Terceiro Reich, na França ocupada,
por se tratar dum período extremamente sensível, ainda presente na memória
colectiva. Porém, esse trabalho tornou possível reconstituir a história da
Continental a partir de dentro, dos seus arquivos, entrando finalmente nesse
território, interdito durante décadas, e levantar o véu que cobria a fascinante
história dos estúdios, com as suas ambiguidades, paradoxalidades,
idiossincrasias, mas sobretudo, resgatou do desconhecido e do esquecimento, um
conjunto de admiráveis obras, surpreendentemente vanguardistas.
Tem sido
produzido algum trabalho de investigação e divulgação recentemente como a
publicação da historiadora Christine Leteux “Continental Films: cinéma français
sous l’Occupation”, os documentários “Laissez Passer” de Bertrand Tavernier e
“O Mistério de Greven” de Claudia Collao, a par de inúmeros artigos na imprensa
e exposições como a retrospectiva sobre a obra de Georges-Henri Clouzot na
Cinemateca Francesa ou entrevistas e conferências dadas pelos investigadores
que se debruçaram sobre cineastas que trabalharam no período da Ocupação ou
sobre a Continental e seu conteúdo e contexto em geral. Esses trabalhos, têm
vindo a devolver o lugar da Continental Films e das suas obras à História do
Cinema e à Historiografia da Europa do Séc. XX.
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