quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Continental Films, Paris, França


Continental Films, Paris, França
Paris - França
Artigo


Estamos no início da década de 40 do século XX, a França encontra-se sob ocupação alemã e o governo francês está exilado em Vichy por essa época.
O panorama cinematográfico francês nos anos 40 estava estagnado, atravessava um período de crise, com muitos estúdios a fechar e a mobilização em torno da guerra era geral. Grandes nomes como Renoir tinham sido forçados ao exílio devido à ocupação nazi, contudo, uma certa crise económica vinha já de trás, de finais da década de 30 mas, ainda assim, a França era uma das maiores indústrias de cinema europeias.
É por isso importante para os alemães controlá-la e é assim que nasce a nova empresa de produção, a Continental Films, uma produtora cinematográfica franco-alemã, instalada em Paris em plena Ocupação. Paris era a cidade onde muitos soldados alemães se deslocavam em licença em busca da diversão e do prazer. A Continental era uma empresa de direito francês e capital alemão. Durante a sua breve existência, entre 1940 e 45, a Continental Films produziu cerca de 30 filmes. Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazi e das figuras mais próximas de Hitler, nomeia para director da Continental, um alemão veterano da I Grande Guerra e amigo de Göring, homem de negócios, já ligado à UFA - Universum Film AG ( era o director de produção da UFA), francófilo e próximo do partido nazi, um homem exigente, rico e megalómano, falamos de Alfred Greven.
A ideia de Goebbels era fundamentalmente fazer dinheiro com a Continental Films, produzindo filmes ligeiros, de entretenimento e comédias, captando o estrelato francês para os filmes, aproveitando que a indústria francesa detinha a distribuição pelos Países Baixos, pela própria França, Espanha, Itália, para onde o cinema francês exportava. A Alemanha estava fora deste circuito, já que era o cinema alemão que, na perspectiva dos nazis, devia ser o de conteúdo, como o de carácter nacionalista. A propaganda estava também a cargo do cinema feito na Alemanha e era o cinema produzido na Alemanha que devia permanecer como o dominante, talvez por esse motivo, a Continental tivesse dificuldades de financiamento, porque o capital era quase todo canalizado para a UFA. A Continental fora criada com uma ideia de negócio e para entreter os territórios ocupados com filmes puramente desprovidos de conteúdo e abrilhantados por estrelas como Danielle Darrieux e Fernandel.
A Continental tem uma história misteriosa e paradoxal e, por incrível que pareça, chega a gozar duma liberdade que é, no mínimo, bizarra, dada a conjuntura sócio-política daqueles anos, e os seus estúdios produziram filmes vanguardistas e inovadores.
Não estava nos planos de Alfred Greven seguir as orientações de Joseph Goebbels, que ao chegar ao seu escritório nos Champs Elysées todas as manhãs, pendurava o sobretudo e o chapéu de chuva no busto de Hitler.
Alfred Greven é, como disse, um francófilo, e não tem dificuldade em fazer-se rodear dos melhores e mais talentosos profissionais do cinema que se fazia em França, desde argumentistas a realizadores, compositores a técnicos e actores e, para isso, fazia uso dos seus métodos ora de sedução ora de chantagem, conforme a situação. É o caso de Georges-Henri Clouzot que é convidado por Greven, que admirava muito o seu trabalho de cenógrafo, a chefiar o departamento de cenografia da produtora franco-alemã. Clouzot pôde mostrar o seu talento e a partir daí, aproveitar a oportunidade para realizar nos estúdios da Continental, duas das suas grandes obras: “Le Corbeau” e “L’Assassin Habite au 21”. Além disso, as pessoas precisavam mesmo de trabalhar ainda que, fazendo-o para a Continental Films, lhes valesse o cliché de colaboracionistas, Clouzot esteve vários anos impossibilitado de filmar depois da Libertação devido à sua ligação à produtora franco-alemã. A verdade é que muitos acumulavam a actividade de profissionais nos estúdios da Continental com a actividade clandestina na Resistência, por exemplo.
A situação daqueles tempos sombrios era complexa, porque havia muitos profissionais que não conseguiam de todo trabalho durante a ocupação nazi e foram captados pelos estúdios da produtora, tanto vedetas consagradas como jovens talentos que se lançaram na Continental, e é neste aspecto que Alfred Greven teve um papel verdadeiramente ambíguo. Fosse por ser um homem de negócios acima de tudo e extremamente exigente, fosse por ser um conhecedor e amador da cultura francesa, Greven fez -se rodear dos melhores e entre os melhores estão evidentemente judeus e comunistas; alguns trabalharam clandestinamente na Continental, sem créditos já que o seu nome jamais poderia ser publicitado ou teriam de o substituir por pseudónimo ou nome falso, mas outros, pelo contrário, tiveram um papel destacado, como foi o caso do paradigmático actor Harry Baur que reunia todos os requisitos para ser persona non grata aos nazis: era inglês, agente-duplo, comunista, judeu mas era uma estrela do teatro e cinema franceses, um grande actor, uma figura incontornável da interpretação em França. O seu desempenho brilhante como protagonista no filme “L’Assassinat du Pére Noel”, o cativante Monsieur Cornusse que representa o homem bom e sonhador, indignou os nazis: “Como era possível um judeu estrelar um filme alemão?!”, na opinião do crítico e realizador Bertrand Tavernier, autor do documentário sobre cinema em Paris durante a Ocupação - “Laissez Passer”, poderia entender-se como um acto de provocação por parte de Harry Baur a sua presença na Continental. Harry Baur viria a morrer devido a brutais maus tratos na prisão às mãos da Gestapo. Há ainda outros casos de judeus como o do compositor Roland Manuel (Levy) que criou música para filmes como “Inconnu dans la Maison” ou do cineasta Raymond Bernard, assim como elementos da Resistência e também russos trabalhavam para a Continental pois já eram profissionais da indústria cinematográfica francesa e estavam em França desde a Revolução Russa.
Certo é que Alfred Greven percebeu desde logo que tinha de fazer este jogo duplo se queria tornar a Continental numa Hollywood europeia. Há aliás, um episódio curioso, quando Greven tenta levar Jacques Prévert para a Continental, o que Prévert não aceitou, mas terá dito a Greven que este jamais alcançaria o sucesso de Hollywood porque a Continental não tinha judeus e eles eram os melhores. O que Prévert desconhecia era que Alfred Greven já o tinha percebido e esse era o seu segredo mais bem guardado.
Alfred Greven queria acima de tudo produzir cinema de qualidade, e conseguiu-o com uma independência notável, dadas as circunstâncias, quer em relação ao governo alemão, quer em relação ao governo francês de Vichy e produziu filmes transgressores e subversivos, no conteúdo e ou na forma.
Temos o exemplo de “Le Corbeau” de Clouzot, um filme que não passaria na censura de nenhum dos governos, pois para os alemães, o filme que retrata um vilarejo que é contaminado por uma praga de cartas anónimas assinadas por um corvo que delata os habitantes, fazendo pairar um clima de terror psicológico e desconfiança entre os membros daquela comunidade, desencorajava a denúncia anónima de que a Gestapo muito se alimentava e era, por isso, na perspectiva dos alemães, um filme ao serviço de Vichy. Para outros era um filme anti-francês, desde logo, o governo francês, conservador e católico, considerou “Le Corbeau” um filme imoral que fala de questões malditas como o aborto e a droga. Os comunistas e a resistência também não o viam com bons olhos pois era produzido com dinheiro nazi. O certo é que, independentemente da ambivalência do filme, que questiona de que lado está o bem e de que lado está o mal (onde estão os bons e onde estão os maus), o que ele denuncia é a cegueira estúpida das multidões que seguem sedentas e dominadas pela cólera, prontas a linchar o primeiro que lhes apareça à frente e isto é uma impiedosa crítica social de que Clouzot lança mão.
O filme “La Symphonie Fantastique” de Christian-Jaque, é claramente uma exaltação da França. Um filme sobre Berlioz, o patriotismo, em que entram personagens como Victor Hugo, o que elevava a moral e auto-estima do país ocupado. Goebbels, furioso, chama Greven a Berlim, depois de ver o filme, para lhe lembrar que a Continental não devia jamais fazer filmes a enaltecer o nacionalismo francês, que não era essa a sua função mas sim filmes comerciais, ligeiros, para fazer adormecer o espectador.
A Continental levou para o cinema obras da literatura francesa nos filmes de André Cayatte “Au Bonheur Des Dames”, adaptada dum romance de Émile Zola; “La Fausse Maîtresse” a partir da obra de Balzac e “Pierre et Jean” da de Guy de Maupassant; ou “la Main du Diable” realizado por Maurice Tourneur, inspirado numa novela do escritor e poeta francês Gérard de Nerval; “L’Assassinat du Pére Noel” de Christian-Jaque a partir do romance de Pierre Véry; “Les Caves du Majestic” realizado por Richard Pottier a partir do romance de Georges Simenon, o que confirma a densidade e independência do cinema que se fez nos estúdios dirigidos por Greven.
Por outro lado, o filme de Maurice Touneur, “La Main du Diable”, é bastante original porque subverte a fórmula do suspense: os momentos de maior perigo e tensão são precedidos de cenas cheias de gente, confusão e barulho (a cena inicial do jantar na estalagem ou a da vernissage), ao vermos a frenética e confusa movimentação da multidão sabemos que algo vai acontecer, ao contrário da fórmula habitual em que é o silêncio, as sombras, a solidão que anunciam o momento de revelação do perigo. 
A Continental Films tal como a figura enigmática de Alfred Greven estiveram envoltas numa névoa de mistério que ultimamente tem vindo a ser dissipada graças ao trabalho de historiadores e críticos de cinema, cineastas e investigadores contemporâneos. 
Os filmes dos estúdios da Continental não colhiam a simpatia da geração da Nouvelle Vague e Cahiers du Cinema por exemplo, e acabaram por ficar exilados no território do esquecimento pelas gerações que se seguiram à Libertação da França e ao fim da II Guerra. 
Foi absolutamente fundamental ter distância para se escrever a História e ter a coragem e curiosidade para investigar os arquivos da empresa e a produção cinematográfica financiada com dinheiro do Terceiro Reich, na França ocupada, por se tratar dum período extremamente sensível, ainda presente na memória colectiva. Porém, esse trabalho tornou possível reconstituir a história da Continental a partir de dentro, dos seus arquivos, entrando finalmente nesse território, interdito durante décadas, e levantar o véu que cobria a fascinante história dos estúdios, com as suas ambiguidades, paradoxalidades, idiossincrasias, mas sobretudo, resgatou do desconhecido e do esquecimento, um conjunto de admiráveis obras, surpreendentemente vanguardistas. 
Tem sido produzido algum trabalho de investigação e divulgação recentemente como a publicação da historiadora Christine Leteux “Continental Films: cinéma français sous l’Occupation”, os documentários “Laissez Passer” de Bertrand Tavernier e “O Mistério de Greven” de Claudia Collao, a par de inúmeros artigos na imprensa e exposições como a retrospectiva sobre a obra de Georges-Henri Clouzot na Cinemateca Francesa ou entrevistas e conferências dadas pelos investigadores que se debruçaram sobre cineastas que trabalharam no período da Ocupação ou sobre a Continental e seu conteúdo e contexto em geral. Esses trabalhos, têm vindo a devolver o lugar da Continental Films e das suas obras à História do Cinema e à Historiografia da Europa do Séc. XX. 

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