sábado, 27 de agosto de 2022

Franceses na Colônia - Artigo


Franceses na Colônia - Artigo
Artigo


Havia muito que franceses navegavam pelo litoral do Brasil, e do Rio de Janeiro em particular. Basta lembrar que os primeiros europeus a se instalarem na Guanabara, antes mesmo da fundação da cidade de São Sebastião, foram os franceses que, sob o comando de Nicolas Durand de Villegagnon, ali ergueram a França Antártica. A região centro sul da América, entre Espírito Santo e São Vicente, constituiu-se numa área privilegiada, embora não exclusiva, de corso e pirataria. Seja através do escambo com os indígenas, do contrabando com os primeiros colonos, seja por meio do saque às vilas costeiras, os franceses foram frequentadores assíduos daquele litoral.
A partir de finais do século XVII e durante todo o século seguinte, a capitania do Rio de Janeiro foi cada vez mais assediada por navios europeus que, para serem recebidos em seus portos, alegavam avarias, falta de víveres e doenças na tripulação. A legislação portuguesa proibia o comércio com estrangeiros, embora os tratados de paz entre as monarquias europeias estabelecessem que não se podia, em nenhum porto, negar hospitalidade às embarcações das nações amigas que precisassem de consertos ou tratar os doentes. Por isso, muitos navios estrangeiros acabaram por entrar no porto do Rio de Janeiro durante todo o período colonial. Seus tripulantes eram acolhidos para se curarem das doenças contraídas em alto-mar, mas eram proibidos de exercer o comércio. Nem sempre, no entanto, as proibições do comércio eram respeitadas. Não raro, com o pretexto de consertar o navio ou tratar a tripulação, o contrabando era feito com a cumplicidade, ou mesmo por iniciativa dos moradores.
Prova disso, além da correspondência entre autoridades no Brasil e em Portugal, são os inúmeros relatos de viagens, roteiros e diários de bordo de marinheiros e comerciantes estrangeiros que, acolhidos nos portos coloniais, visitaram e descreveram vilas, cidades e seus habitantes. Alguns foram publicados nos séculos XVI, XVII e XVIII, servindo de guia para futuras expedições. Outros continuam inéditos, depositados em arquivos e bibliotecas na Europa e no Brasil, como o Arquivo Nacional. Ambos podem dar uma dimensão aproximada do conhecimento que os europeus detinham das costas brasileiras, em particular da região centro-sul.
De fato, todo um saber empírico acerca dos territórios e das sociedades coloniais se constituiu a partir de dados observados in loco pelas sucessivas viagens empreendidas por franceses, ingleses, espanhóis, holandeses etc. Os navegadores do Velho Mundo instruíam-se uns aos outros, somando e enriquecendo as informações que adquiriam com boa dose de precisão, por meio da leitura de relatos de viagens passadas, do acréscimo de novas observações, do acúmulo de dados e descrições, aproveitando a experiência de seus antecessores para conferir maior eficácia a seus próprios intentos. A literatura constituída por diários de bordo e relações de viagens traduzia um conhecimento acumulado e constantemente corrigido de acordo com novas observações e novas descobertas.
Quando, em 1695, a esquadra francesa comandada pelo capitão De Gennes solicitou a entrada no porto do Rio de Janeiro para refresco da tripulação e aprovisionamento dos navios, François Froger, um de seus tripulantes, que escreveu um interessante diário da expedição, afirmou que seus moradores não pareciam habituados a navios de outras nações. Diante da simples visão das naus francesas, ficaram tão atemorizados, que enviaram suas mulheres e bens para o interior. Em bando publicado alguns meses depois, o governador Sebastião de Castro Caldas referia-se: "a maior parte destes moradores que faltos de experiência com qualquer notícia de navios nesta costa, procuram segurar as suas famílias e cabedais nos matos de suas fazendas, devendo pelo contrário uma e outra coisa recolher a esta cidade, onde estão seguros de qualquer sucesso."
O clima de tensão era aprofundado pela circulação de boatos. A 13 de dezembro de 1695, Sebastião de Castro Caldas fora forçado a lançar outro bando no qual dizia ter tido a notícia de "que muitas pessoas deste povo têm por sua conta, por temor ou por curiosidade, o ofício de fabricarem novas supostas e fantásticas, com pretexto e ocasião de se acharem neste porto três navios da nação francesa, com que irritam e causam perturbação entre os moradores desta cidade".
Fantasiosos ou não, os boatos, fruto do temor e da curiosidade do povo diante da presença dos inusitados e indesejáveis visitantes, provocavam distúrbios na cidade. A quatro de dezembro, Castro Caldas afirmava que, devido à presença dos franceses, muitos moradores, inquietos, "perturbam, e descompõem ... alguns dos marinheiros que têm vindo a terra, sobre o que tenho passado várias ordens e mandado deitar rondas". No entanto, como o policiamento havia se mostrado infrutífero no controle das manifestações hostis aos visitantes, deliberava que "toda pessoa de qualquer qualidade que seja que com obras ou palavras descompuser a qualquer marinheiro ou pessoa da dita nação ... será rigorosamente castigada".
Não era a primeira vez que a chegada de navios estrangeiros no porto e a descida de sua tripulação em terra firme provocavam desordens e perturbações. E não seria a última. No dia 20 de dezembro, Sebastião de Castro Caldas foi obrigado a lançar um novo bando aparentemente contraditório em relação aos dois anteriores. Nele afirmava lhe ter "chegado a notícia de terem faltado alguns marinheiros e soldados da guarnição dos navios da nação francesa que se acham neste porto, os quais, por não serem práticos neste país, não é crível que possam fugir nem esconder-se sem ajuda e favor, ou notícia, de algum dos moradores desta cidade e seus distritos". Considerava que a cumplicidade entre os moradores e os franceses acarretava "grave dano e prejuízo do serviço das ditas naus, a quem pela boa paz, aliança e amizade que temos com a dita nação, se deve toda a correspondência e hospitalidade". Mas, por detrás destas razões, o governador tinha ciência do dano bem maior que aquele tipo de infração, no caso de os moradores abrigarem franceses desertores dos navios e com eles comerciarem, poderia causar às rendas da alfândega e do rei de Portugal.
Apesar da relativa tolerância à entrada de estrangeiros nos portos do Brasil, o século XVIII foi inaugurado com explícitas ordens régias exigindo sua expulsão sumária. A única exceção referia-se àqueles que, casados com portuguesas, tivessem filhos e, sobretudo, que não exercessem qualquer atividade mercantil.
A capitania do Rio de Janeiro parecia ser uma das mais visadas por estas novas medidas, principalmente por seu porto servir para o embarque do ouro proveniente das Minas. Em resposta a uma carta régia que impedia que dali por diante qualquer estrangeiro passasse à região mineradora, o governador do Rio, d. Álvaro de Albuquerque, afirmava que se devia também expulsá-los dos portos marítimos, principalmente das "vilas de baixo", como Ilha Grande e Parati.
Com efeito, a baía de Angra dos Reis dividia com a região de Cabo Frio a preferência de piratas, corsários e contrabandistas. Incansáveis foram as diligências das autoridades coloniais no sentido de impedir o comércio, o saque de embarcações e de povoações, ou o simples contato entre estrangeiros e a população local. Em 1704, d. Álvaro de Albuquerque voltava a escrever ao rei, informando que na Ilha Grande achavam-se alguns franceses casados com filhas de "pessoas principais da terra". Afirmava parecer-lhe prudente tirá-los de lá, pois suspeitava de que o fato de se acharem ali estabelecidos levava a que tantos outros navios buscassem aqueles portos. No entanto, como os avisos que havia recebido de Lisboa só faziam menção à expulsão dos estrangeiros "que constar são levantados isto é, amotinados, ou de nação inimiga", e como não lhe constava que Portugal estivesse em "guerras declaradas" contra a França, evitava tomar qualquer atitude sem uma explícita ordem real.
A 28 de fevereiro de 1707, o rei voltava a escrever ao governador do Rio dizendo ter sido informado de que, apesar das proibições contra a entrada de estrangeiros nas conquistas, muitos "têm passado e passam em grande número, não somente a habitar nas praças marítimas delas, mas ainda nos sertões e principalmente nas minas dessa capitania, cuja ambição os desperta". Temia o prejuízo que poderia resultar ao Brasil, "pelo perigo que há, de que sendo devassado pelos estrangeiros, se informarão das forças dele, disposição de sua defesa, capacidade dos portos ... e das entradas das terras para as Minas". Mencionava outro grave inconveniente, desta vez para Portugal: "de que por este modo vêm os estrangeiros a fazer, seu próprio, este comércio que é dos naturais deste Reino, o qual ... não pode deixar de padecer maiores descaminhos nos direitos à minha Fazenda".
Em 1719, d. João V escrevia a Ayres de Saldanha de Albuquerque, governador do Rio de Janeiro, afirmando ter tido ciência da pouca ou nenhuma observância da lei de 1711, que proibia o comércio com a tripulação de navios de outras nações da Europa. Fora informado que jamais anteriormente os estrangeiros frequentaram tanto o litoral do Brasil como depois da publicação da referida lei. Levados pela "ambição", pediam acolhida com "pretextos afetados", a fim de introduzirem toda sorte de mercadorias em troca de ouro. Ordenava que o governador cumprisse estritamente a lei, sem, no entanto, faltar ao "direito de hospitalidade" firmado nos tratados de paz com as nações amigas.
Não apenas o comércio ilegal atemorizava as autoridades lisboetas. Um outro fantasma povoava-lhes as mentes: a existência de potenciais espiões entre os muitos estrangeiros que percorriam os portos, as vilas e as cidades coloniais. Em finais de 1689, uma carta régia dirigida ao governador do Rio de Janeiro advertia-o de que "alguns estrangeiros passam às capitanias desse estado do Brasil sem mais causa que a sua curiosidade, para verem e observarem as alturas dos portos, sítios e fortificações das praças, de que podem resultar alguns inconvenientes". Possivelmente aquele alarme fora motivado por um francês conhecido como Abade de Pequil, senhor de Monte Vero. Desembarcando em Pernambuco, fez questão de visitar todas as fortalezas, e muitos moradores ouviram-no falar mal do "governo do Reino" de Portugal.
Algumas das expedições estrangeiras que chegavam aos portos do Brasil deparavam-se com europeus que há muito ali viviam, a quem pediam informações e de quem recebiam ajuda e favor, além de notícias relativas às defesas e aos costumes da terra. Um desses europeus, ou melhor dizendo, francês, era Ambrozio Jauffret. Nascido em Marselha, viveu em São Paulo durante cerca de trinta anos, onde se casou e teve filhos. Em 1704, enviou ao ministro da Marinha de seu país natal, conde de Pontchartrain, uma espécie de relatório informando-o do estado das capitanias do sul do Brasil, do Rio de Janeiro até o rio da Prata. Este relato serviu de base ao documento intitulado Mémoire et projet pour enlever Riojaneiro Memória e projeto para conquistar o Rio de Janeiro, que, por sua vez, instruiu a invasão, o saque e o sequestro da cidade, em 1711, pelo famoso corsário René Duguay-Trouin.
A obra em questão funda-se numa precisão espantosa de informações acerca das rotas e condições de navegação, do território urbano do Rio, de suas ruas, prédios, defesas, economia e administração. Fornece preciosos detalhes sobre o período de saída das frotas portuguesas para Lisboa, abarrotadas de ouro, contendo, inclusive, previsões sobre o provável lucro que obteria uma eventual empresa de corso que tivesse como objetivo invadir e saquear a cidade. Passava, então, a descrever seus habitantes, que dizia serem extremamente ricos devido ao comércio que faziam com os espanhóis no Rio da Prata e graças às minas de ouro recém-descobertas, situadas a cem léguas do litoral. Os conventos dos religiosos eram, a seu ver, suntuosos, sobretudo os dos jesuítas, de São Bento e do Carmo; as igrejas possuíam enormes quantidades de prataria, o que levava a recomendar que os invasores levassem o que houvesse de excessivo e deixassem apenas o estritamente necessário.
Anexa à Memória encontra-se um belo e detalhado mapa do Rio e um documento intitulado Observation sur la Ville de Riojaneiro Observação da cidade do Rio de Janeiro, revelando sua situação em termos de latitude e longitude, descrevendo a baía, a direção dos ventos no seu interior, a melhor hora do dia para tentar a entrada da barra, suas fortalezas, canhões e munições e, finalmente, a cidade propriamente dita, com destaque para o aqueduto da Carioca e os conventos. Seu autor finalizava a descrição dizendo-se conhecedor da grande covardia dos portugueses, o que o levava a prever, em caso de invasão, a fuga do governador.
A memória escrita por Ambroise Jaufrée foi de grande utilidade para Luís XIV durante a Guerra de Sucessão da Espanha (1703-1713), que colocou em campos opostos França e Portugal, deflagrando uma série de investidas corsárias. O corso, distintamente da pirataria e da ação dos flibusteiros, era um empreendimento oficial praticado pelas monarquias europeias nos momentos de guerra. Os capitães dos navios corsários recebiam uma carta de marca concedida pelo rei, que os autorizava a atacar os navios e a saquear os territórios das nações inimigas. No caso da França, o corso era, sobretudo, uma atividade privada. Os navios corsários pertenciam, em sua grande maioria, a particulares que os armavam e os abasteciam para o comércio ou para o corso, conforme a conjuntura. Durante a Guerra de Sucessão, os mares e oceanos coalharam-se de corsários de todas as nações, sobretudos franceses.
Devido à guerra na Europa, na manhã de 17 de agosto de 1710, uma esquadra composta de seis navios comandados pelo corsário francês Jean François Duclerc surgiu ao largo da baía de Guanabara. O alarme havia sido dado no dia anterior, quando as naus que navegavam sob falso pavilhão inglês foram avistadas por um pescador em alto mar. Hostilizado por disparos das fortalezas de São João e de Santa Cruz, Duclerc resolveu navegar mais para o sul, em direção à Ilha Grande. Impedido de ali desembarcar, rumou um pouco para o norte, chegando à praia de Guaratiba, onde, sem maiores dificuldades, desceram a terra cerca de 1.200 homens. O comandante, seus oficiais e soldados, guiados por quatro escravos fugidos, seguiram a pé por matos espessos e terrenos pantanosos até bem próximo à cidade, quando, a 18 de setembro, alcançaram um engenho dos jesuítas.
Na manhã de 19 de setembro, Duclerc chegou finalmente à cidade, na altura da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Travou-se intensa batalha em que seus bravos defensores lutaram com afinco, pois no mesmo dia derrotaram os franceses. Muitos foram mortos e os restantes aprisionados. Duclerc e alguns de seus oficiais foram presos no colégio dos Jesuítas. Tempos depois foi removido para uma das casas da cidade, onde foi assassinado por homens mascarados. Durante os meses que se seguiram foi possível aos portugueses se deliciarem com os louros da vitória, promovendo festejos, dando mostras de sua alegria à luz de luminárias e missas em ação de graças por tão notável sucesso.
Alguns dos prisioneiros deveriam ser, um ano mais tarde, removidos para Lisboa. O bando do governador Francisco de Castro Morais, ao mesmo tempo em que preparava o embarque, demonstrava suspeita e temor de que os moradores os acobertassem em suas casas. Ordenava que os franceses estivessem no dia seguinte, 28 de agosto de 1711, no largo em frente ao palácio (atual Praça XV), para serem distribuídos nos navios da frota portuguesa. E advertia: "todo o morador que em sua casa tiver francês algum, se for consentido ou concorrer para que haja falta em se apresentar, será castigado severamente e preso pelo tempo que me parecer. E para que chegue a notícia a todos, e não possam alegar ignorância mandei lançar este bando a som de caixas pelas ruas mais públicas desta cidade".
A frota não havia ainda zarpado quando um paquete de carreira inglês entrara no porto trazendo notícias de que uma grande esquadra havia sido armada nos principais portos da França, tendo como destino a cidade do Rio de Janeiro. Imediatamente o governador reuniu as guarnições das fortalezas, ordenando que as tropas e as milícias que defendiam a cidade permanecessem em estado de alerta. Alguns dias mais tarde um vigia em alto mar avistou navios franceses na altura de Cabo Frio. As precauções foram intensificadas. A prontidão foi mantida até 11 de setembro, quando, sem mais notícias, os ânimos se arrefeceram e o governador ordenou a retirada dos defensores de seus postos.
A 12 de setembro de 1711, a esquadra francesa composta de 18 embarcações, sob o comando do corsário René Duguay-Trouin, entrou, de forma espetacular, nas águas da Guanabara. Jamais, nem mesmo experientes marinheiros portugueses haviam mostrado tanta perícia em romper a estreita e fortificada entrada da baía. Encobertos por intenso nevoeiro matinal, em poucas horas os franceses encontravam-se defronte à cidade, diante dos olhares perplexos e incrédulos de seus habitantes. Embora os navios portugueses, tanto mercantes quanto de guerra, ainda estivessem atracados no porto, nada puderam fazer e foram os primeiros alvos dos canhões inimigos. Imediatamente a perplexidade levou ao pânico e o pânico ao desânimo. Dois dias depois, em 14 de setembro, cerca de três mil franceses desciam na Ilha das Cobras. Por algum tempo o governador tentou manter o controle da situação. No dia 19, os franceses enviaram mensagem pedindo a rendição dos portugueses, caso contrário, bombardeariam a cidade. Castro Morais retrucou bravamente, afirmando que lutaria até a última gota de seu sangue. No entanto, ao anoitecer do dia 21, apavorados diante da proximidade do inimigo e com os nervos à flor da pele, os regimentos e as milícias de defesa começaram a desertar, seguidos dos moradores. Circulavam rumores de que não havia mais jeito de resistir, pois tudo estava pedido. Ao cair da noite, Francisco de Castro Morais ordenou o abandono das trincheiras e a total evacuação da cidade. Até parece que Jauffré adivinhara, anos antes, o que iria acontecer.
Enquanto isso, os invasores, sem ter notícias da fuga, preparavam-se para entrar no dia seguinte na cidade. Tão logo veio a aurora, Duguay-Trouin foi informado de que ela se encontrava deserta. Cautelosos, sem conseguirem acreditar no que ouviam dizer, e menos ainda no que viam, os franceses tomaram do colégio dos Jesuítas. A partir de então começaram a saquear e a reunir em seus navios tudo o que encontraram de valor. No entanto, não acharam ouro, pois os moradores, como sempre costumavam fazer, levaram o que de mais valioso possuíam para suas fazendas no interior. Da mesma forma o governador mandara esconder o ouro dos quintos reais proveniente das Minas. Ao saber disso, Duguay-Trouin lançou um derradeiro ultimato, exigindo o pagamento imediato de um significativo resgate pela cidade: 610 mil cruzados em ouro, 100 caixas de açúcar e 200 cabeças de gado. Caso contrário, ele a destruiria.
O temor causado pela invasão francesa de 1711 permaneceu por todo o século XVIII. Porém, não só de temor eram alimentadas as relações entre portugueses e franceses. Também de hospitalidade, cumplicidade e sedução.
Exemplo de hospitalidade nos é narrado pelo diário de viagem de uma embarcação francesa que fazia parte de uma esquadra real com destino às Índias Orientais. Em 1748, mais precisamente no dia 23 de junho, chegava ao Rio de Janeiro o navio l'Arc-en-Ciel, capitaneado por Monsieur Pepin de Bellisle. Antes de entrar na baía, o comandante enviara alguns oficiais à cidade para informar de sua próxima ancoragem no porto. Ao desembarcarem, o governador Gomes Freire de Andrade voltava da missa na igreja do Carmo. Vinha a pé, sob um para-sol carregado por dois escravos. Os franceses foram convidados a seguirem-no até o palácio, onde, em audiência, explicaram a razão que os trazia ali. Rumavam para as possessões francesas no Índico, e seus navios estavam avariados, precisavam de víveres e transportavam marinheiros doentes. Foi-lhes concedida a hospitalidade solicitada, e o comandante e seus oficiais alugaram uma casa na cidade.
A primeira visita retribuída por Gomes Freire a Monsieur de Bellisle é magnificamente relatada. O governador chegara num cavalo belíssimo, cujos arreios eram totalmente de ouro e brocados. De ouro eram ainda suas pistolas, sua espada, as esporas e o cabo de seu rebenque. Usava um traje escarlate igualmente bordado a ouro. Chegou à residência do comandante francês seguido de um grande número de oficiais militares. Acomodaram-se na varanda, com uma bela vista sobre a baía.
Alguns dias mais tarde os franceses foram convidados a assistir a um espetáculo de teatro, que consistia em uma peça de marionetes de tamanho natural e cujo tema era a conversão de alguns doutos pagãos por Santa Catarina. No interior do teatro os homens sentavam-se em bancos com espaldares e braços como os das igrejas, enquanto as mulheres escondiam-se nos camarotes. A orquestra compunha-se de instrumentos de corda e um inglês tocava divinamente uma flauta transversa.
E assim, em meio a gentilezas de parte a parte, transcorria sem maiores incidentes a estadia dos tripulantes do l'Arc-en-Ciel no Rio de Janeiro do tempo do conde de Bobadela (1733-1763). A curiosidade dos portugueses rendeu várias e agradáveis visitas à casa de Monsieur de Bellisle e ao navio francês. Gomes Freire e algumas das principais pessoas da cidade foram homenageados com um jantar a bordo, cuja abundância e delicadeza dos pratos não deixava nada a desejar. Beberam a saúde dos respectivos monarcas ao som de salvas dos canhões franceses, logo retribuídas pela fortaleza da Ilha das Cobras. Dias após o jantar oferecido por Bellisle chegou a vez de o governador convidá-lo para uma ceia no seu palácio. Gomes Freire é descrito pelo autor da memória como uma pessoa culta e distinta, que gostava de conversar sobre a França, apesar de nunca ter lá estado.
Ao final de dez ou doze dias de permanência na cidade, grande parte dos doentes havia convalescido, o navio foi consertado e começaram os preparativos para supri-lo de mantimentos. No dia 9 de maio fizeram uma última visita de cortesia ao governador e, no dia seguinte, saíram ao raiar do sol, encantados com as relações pacíficas e amigáveis que marcaram a convivência entre os habitantes da cidade, as autoridades portuguesas e a tripulação francesa.
Na segunda metade do século XVIII outros europeus, entre eles franceses, passaram pelo Brasil e, especificamente, pelo Rio de Janeiro. Em pleno "século das Luzes", o interesse por expedições exploratórias, movidas pela curiosidade científica, pela classificação da natureza e por razões mercantis, políticas e estratégicas resultou em inúmeras viagens de circunavegação do globo, como as comandadas por Byron, Cook, Bougainville, La Pérousse e outros. Mas não trataremos delas aqui. Algumas inspiraram temor, outras desfrutaram a hospitalidade de moradores e vice-reis. Voltemos ao contrabando, à cumplicidade e, sobretudo, à sedução. Várias são as histórias de contrabandistas, piratas e corsários que fizeram pouco caso da proibição do comércio de estrangeiros com o Brasil. Certamente nenhuma tão interessante quanto a que teve como protagonista uma mulher, Joana d'Entremeuse.
A cinco de junho de 1799, o vice-rei, conde de Resende, escrevia a d. Rodrigo de Souza Coutinho, secretário da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, dando notícia de que uma francesa, "que se intitula Joana d'Entremeuse" havia partido do Rio para Lisboa. O conde julgava prudente relatar esta notícia, uma vez que aquela mulher, "pela sua nação, pela sua viveza, pelo seu caráter insinuante e pelos seus projetos e indústria se faz merecedora de ser olhada com circunspecção".
Além da carta do vice-rei, as aventuras de Joana chegaram até nós por meio da abertura de uma devassa contra ela em Lisboa, quando, depois de muito contrabandear entre as possessões francesas na África e no Índico e os domínios espanhóis e portugueses na América, foi enfim descoberta pelas autoridades portuguesas. Joana nasceu provavelmente na França, porém, transferiu-se, não se sabe bem se antes ou depois da Revolução Francesa, para as ilhas Maurícias, no oceano Índico, próximas a Moçambique. Em 1796 decidiu retornar à França. Naquela viagem seu destino confundiu-se com o de outros contrabandistas, como o português Eleutério Tavares. Os dois zarparam das Maurícias no navio Boa Viagem, com parte da carga adquirida de embarcações portuguesas apresadas por corsários franceses no oriente. Simulando dirigir-se ao Rio da Prata, navegaram, ao contrário, até Salvador, com o pretexto de consertar as avarias sofridas pelo navio. Esperavam ter bom acolhimento e, eventualmente, vender as mercadorias que traziam. A permissão de comerciar, no entanto, lhes foi negada pelo governador. Durante a permanência na Bahia, nenhum dos tripulantes do navio pôde descer a terra. A não ser Joana. Enquanto seus companheiros rumaram para o sul, atracando em pequenos portos da capitania, nos quais conseguiram contrabandear o que levavam, Joana permaneceu na cidade, recebendo autorização para guardar suas mercadorias em armazéns da alfândega.
De Salvador passou ao Rio da Prata, unindo-se, em Buenos Aires, à comunidade de comerciantes franceses provenientes das Maurícias. Recebeu cartas de recomendação de homens de negócio e do próprio vice-rei espanhol, com as quais rumou para o Rio de Janeiro, onde foi bem acolhida pelo conde de Resende e pelos principais comerciantes da então capital do Estado do Brasil. Permaneceu no Rio por 13 meses, interrompidos apenas por nova viagem a Montevidéu, tempo suficiente para angariar, mais uma vez, as simpatias e a confiança de todos. Um negociante vizinho de Joana no Rio testemunhou que a francesa possuía grande séquito, e as pessoas mais qualificadas da cidade a estimavam muito, por ser instruída e saber lidar como ninguém com os negócios.
Joana apresentou vários requerimentos ao conde de Resende, entre eles um que lhe pedia permissão para vender as mercadorias que trouxera de Montevidéu. O poder de sedução d'Entremeuse devia ser mesmo grande, pois conseguiu o que queria. O capitão de um navio português afirmou que Joana, fazendo-se muito agradável a todos, por sua instrução e prendas, conseguiu empréstimos para comprar uma pequena embarcação, enviando-a a Montevidéu e a Caiena com suas mercadorias. Todos eram unânimes nos elogios à francesa, inclusive o vice-rei, que lhe concedera passaportes de ida e volta ao Rio da Prata, além de permissão para viajar sob a bandeira portuguesa.
Depois de muito contrabandear, e já levantando algumas suspeitas no vice-rei, Joana resolveu voltar à Europa, passando primeiro por Portugal, para depois se dirigir à França. Mas a partir daí sua sorte mudaria. A atitude mais sensata que o conde de Resende tomou diante do caráter insinuante e persuasivo d'Entremeuse foi escrever a d. Rodrigo de Souza Coutinho, relatando as peripécias da francesa e advertindo que, apesar de suas concessões anteriores, o procedimento daquela mulher era tão suspeitoso, que considerava justo partilhar suas dúvidas com o ministro.
Joana chegou a Lisboa em setembro de 1799, onde foi presa pelo intendente de Polícia Pina Manique. Tinha 32 anos. Talvez por ser mulher num mundo no qual os homens predominavam - o dos negócios e do contrabando - o príncipe-regente d. João enviou à prisão duas outras mulheres e dois cirurgiões para examinarem Joana e constatarem se se tratava mesmo de uma mulher, ou se de um homem disfarçado. O processo não foi muito longe. Por falta de provas e com a intervenção do general Lannes, embaixador francês, Joana foi solta e voltou ao seu país de origem.
O temor das autoridades portuguesas diante desta incrível mulher não se devia apenas ao fato de ela ser comerciante e contrabandista. Suspeitava-se que ela fosse também republicana, tendo em vista os acontecimentos que convulsionaram seu país durante e após a Revolução Francesa. Além do contrabando, a última década do século XVIII fez alastrar em Portugal e no Brasil um verdadeiro pânico das revolucionárias ideias francesas. São muitos os documentos encontrados no Arquivo Nacional, principalmente a correspondência de governadores e vice-reis no Brasil, em torno das "perniciosas máximas" e dos "abomináveis princípios" franceses. Não é de se espantar, uma vez que os cidadãos daquela nação haviam derrubado e degolado seu próprio rei. A coroa portuguesa temia que, contaminados por aqueles ideais, seus súditos, tanto na Europa quanto no Brasil, almejassem fazer o mesmo. Temia ainda que estes últimos, com base nas aspirações de liberdade, igualdade e fraternidade ousassem insurgir-se contra o domínio do rei de Portugal.

Nenhum comentário:

Postar um comentário