segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Significados das Representações Escultóricas na Fachada da Cervejaria Bopp & Irmãos, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil - Artigo

 


Localização das principais representações escultóricas na fachada da Bopp Irmãos, sobre desenho atribuído a Theo Wiederspahn.


Fachada do Prédio 1 da Cervejaria Bopp & Irmãos.


Vista parcial da fachada do Prédio 2.


Figura de Mercúrio na fachada do Prédio 1.


Conjunto principal na parte superior da fachada do prédio 1.


Colunas na forma de garrafas empilhadas na entrada do Prédio 1.


Efígies na fachada do Prédio 1, sob a figura de Mercúrio.


Relevo junto à platibanda do Prédio 1.


Conjunto sobre a porta frontal do Prédio 1.


Conjunto escultórico da porta frontal do Prédio 2.


Torre do Prédio 2.


Conjunto sobre a torre do Prédio 2.


Conjunto sobre a torre do Prédio 2.


Friso superior no Prédio 2.


Friso inferior no Prédio 2.


Gambrinus.


Conjunto na parte superior da estrutura de ligação entre os Prédios 1 e 2.


Conjunto na parte central da estrutura de ligação entre os Prédios 1 e 2.


Friso da lateral direita do Prédio 1.


Conjunto situado na lateral direita do Prédio 2.


Figura de São Pedro na lateral direita do Prédio 2.



Significados das Representações Escultóricas na Fachada da Cervejaria Bopp & Irmãos, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil - Artigo
Porto Alegre - RS
Artigo



Os arqueólogos históricos têm, no Brasil, tratado de representações escultóricas em um número relativamente pequeno de trabalhos. Em geral, são arquitetos ou historiadores da arte que se ocupam dessa tarefa. As análises e interpretações realizadas são das mais distintas, desde as que colocam o foco
no artista, como indivíduo criador, passando por aquelas que consideram que a base de análise deve centrar-se no desenvolvimento das forças produtivas e na ideologia dominante, até aquelas que tomam esses elementos como signos não-verbais e procuram chegar ao seu significado simbólico.
Este trabalho é fruto de uma reflexão sobre as representações escultóricas presentes na fachada da fábrica de cerveja Bopp & Irmãos, em Porto Alegre. Partindo do entendimento de que a cultura é um sistema de comunicação, realizei uma arqueologia interpretativa, através da qual procurei alcançar a compreensão dos significados dessas representações.
É importante salientar, aqui, que a Arqueologia, como a ciência que estuda “a totalidade material apropriada pelas sociedades humanas, como parte de uma cultura total, material e imaterial, sem limitações de caráter cronológico”, não pode ser reduzida nem ao estudo dos “objetos”, nem a um passado remoto, nem a uma mera técnica – a escavação. A materialidade da cultura é a via de acesso do arqueólogo a outros aspectos da cultura. Isso implica em considerar que um artefato se constitui a partir de uma ação intencional e deve ser entendido como “coisa física, produto e vetor material“ de relações sociais à qual “o homem (a sociedade) impôs forma, função e sentido”. Assim, o artefato não apenas reflete comportamentos culturalmente determinados, como, sobretudo, promove, expressa e manipula interesses e objetivos tanto políticos, como econômicos e sociais. A relação de intencionalidade entre o indivíduo e o artefato produzido abre caminho para a compreensão de aspectos não materiais da cultura, a partir da sua materialidade.
Considerar uma fachada de fábrica como objeto de estudo da Arqueologia, aplicando-lhe os métodos de análise da cultura material, implica pensar a relação entre sujeito que faz e objeto que é feito, ou seja, pensar as relações de intencionalidade entre pessoas e artefatos. Deetz, ao definir cultura material como aquela parte do meio físico ao qual o homem dá forma segundo um conjunto de planos culturais, chamou a atenção para o fato de que um dos seus maiores benefícios é “fornecer acesso ao pensamento daqueles responsáveis por sua criação”.
As esculturas – seu conjunto, sua articulação e ordenação – foram tomadas como artefatos, logo, como fato cultural. Esta consideração pressupõe que tais representações escultóricas possuem significados que são de domínio público. Como afirmou Geertz, “a cultura é pública porque o significado o é”. Ou seja, as representações existem porque existe tradução para elas no universo de quem as vê, e, mais que isto, desempenham um papel na vida da sociedade ou, ao menos, de algum setor da sociedade.
O que busco, então, é o significado contido nas representações escultóricas e que foi transmitido por elas e o seu papel na sociedade portoalegrense do início do século XX.
A metodologia empregada consistiu no estabelecimento de conjuntos escultóricos, organizados em função de sua posição na fachada, na observação e análise das representações existentes e das relações entre elas. Procurou-se, também, distinguir as diversas unidades que compõem cada conjunto e descrevêlas separadamente, buscando seus significados; e, por fim, analisá-las em conjunto, a partir das proposições colocadas antes, tentando uma interpretação global.
A Cervejaria Bopp & Irmãos / breve histórico:
A Cervejaria Bopp & Irmãos foi inaugurada em 1911, constituindo-se na principal fábrica de cerveja de Porto Alegre, à época, e está situada na Avenida Cristóvão Colombo, nº 545. Buscando contextualizar historicamente a cervejaria, é preciso dizer que foi no final do século XIX que surgiram as primeiras
empresas industriais no Rio Grande do Sul. Suas origens estão estreitamente ligadas ao processo de imigração, iniciado em 1824, com a chegada dos primeiros colonos alemães ao estado.
Foi através do capital acumulado pelos comerciantes que compravam os produtos coloniais – e que controlavam, nas colônias, a venda de artigos importados dos grandes centros – que surgiram os primeiros estabelecimentos industriais. Eles se constituíram, então, numa forma de diversificação do capital comercial. Em geral, as indústrias nasceram pequenas, fundamentalmente familiares. Outras, porém, foram instaladas contando com um grande volume de capital investido, e puderam, desde o seu início, utilizar máquinas e trabalho assalariado. Ao lado da existência desse capital comercial, o surgimento de um setor industrial foi favorecido também pela formação de um mercado consumidor e pela política econômico-financeira conhecida como “Encilhamento”, que ampliou o meio circulante e facilitou o crédito para investimentos na produção.
As indústrias mantiveram “por longo tempo características artesanais, ou pelo menos combinando-se com o uso progressivo de máquinas”. Os prédios onde funcionavam não possuíam características que
pudessem diferenciá-los de outros com funções distintas, comerciais ou, mesmo, residenciais. No entanto, a introdução de tecnologia e a aquisição crescente de máquinas envolveram mudanças espaciais, reordenando o espaço fabril do ponto de vista da funcionalidade do trabalho manufatureiro.
Ao mesmo tempo, a arquitetura dos edifícios industriais passou a incorporar uma carga simbólica que não deve ser esquecida: “Naturalmente, a fábrica, segundo a ótica burguesa, era visualizada como sinônimo de progresso, de riqueza, de civilização”.
A emergência de um sistema republicano e capitalista, que se construiu paralelamente ao avanço da industrialização, foi acompanhada pelo desenvolvimento de um modo de vida burguês, que valorizava, conforme sublinhou Lima, “o individualismo, as fronteiras entre o público e o privado, o universo familiar e a ritualização da vida cotidiana, a acumulação de capital (tanto real quanto simbólico), os critérios de ‘respeitabilidade’, a fetichização do consumo e a ascensão social”. Neste processo, Porto Alegre viu crescer, no final do século XIX, seu comércio, sua indústria, seus equipamentos de lazer,
de educação e de administração.
A reformulação da estrutura urbana, que foi um fenômeno comum ao mundo ocidental do século XIX, esteve associada às idéias de modernidade presentes no imaginário social da época. Neste sentido, também Porto Alegre inseriu-se num amplo processo ligado à emergência de uma ordem social burguesa que demandava um reordenamento da cidade segundo os novos valores surgidos em seu bojo e que, pouco a pouco, consolidavam-se no imaginário social.
Arquitetura e grupo social:
A arquitetura dos prédios construídos pela burguesia porto-alegrense, em ascensão no início do século XX, foi utilizada como forma de afirmação e legitimação de seus valores e de seu poder. Procurava-se a superação do passado colonial, que a elite ascendente desejava esquecer, e as formas arquitetônicas corresponderam, assim, aos ideais de progresso e civilização: a burguesia emergente procurava espelhar-se na cultura européia, considerada mais adiantada e civilizada. Géa mostrou como a elite – formada por comerciantes, banqueiros e industriais de origem européia (imigrantes ou filhos de imigrantes alemães, italianos e portugueses) – procurou reforçar, “através de opções formais, os ideais vigentes que buscavam a modernização do país”. Numa demonstração grandiloqüente, essa burguesia buscou marcar um ethos de modernidade ostentado como estética.
O prédio da Cervejaria Bopp & Irmãos foi considerado, na época, como o mais vasto prédio de cimento armado existente no país. Foi construído pelo escritório de engenharia de Rudolph Ahrons, um descendente de imigrantes alemães que estudou na Politécnica de Berlim, onde se formou em 1902. Ahrons foi catedrático da Escola de Engenharia de Porto Alegre, da qual foi fundador, e presidente da Companhia de Seguros Aliança do Sul, da qual era sócio. Foi, enfim, uma pessoa com trânsito nos
círculos de poder e de grande influência social. O projeto arquitetônico e iconográfico é de Theodor Wiederspahn, um imigrante alemão que estudou na escola de construção de Wiesbaden, de onde saiu em 1894. Responsável pelos projetos dos mais importantes edifícios de Porto Alegre dessa época, Theo
Wierderspahn chegou ao Rio Grande do Sul para trabalhar na construção de estradas de ferro. As esculturas da fachada foram executadas pelos escultores de João Vicente Friederichs, também descendente de alemães. Um desses escultores, Ernesto Schob, foi contratado em Munique.
Com relação ao grupo social que encomendou essa fachada, é preciso assinalar ainda que os Irmãos Bopp eram, também, descendentes de imigrantes alemães, que integravam a emergente burguesia industrial porto-alegrense.
O “mito de origem” da Cervejaria conta que Carlos Bopp, o fundador da fábrica, era um funileiro, a quem havia sido encomendada uma caldeira, no ano de 1881. Como o cliente jamais foi retirar a encomenda, a esposa de Carlos sugeriu que se utilizasse a caldeira para fazer cerveja e, desta forma,
abrandar o prejuízo. Assim, a mulher fazia a cerveja e Carlos, nos finais de semana, colocava os recipientes num carrinho de mão e vendia o produto na vizinhança. O sucesso foi tão grande que a produção cresceu e surgiu a fábrica.
Carlos Bopp gostava de dizer que quem tomava cerveja ficava forte como um elefante. Por isto, o grande animal passou a ser uma espécie de símbolo da família. Em 1907, a cervejaria já era uma das mais importantes do país e, em 1909, os três filhos do funileiro deram início à Bopp & Irmãos, no local onde hoje está o prédio aqui estudado.
A inauguração do novo prédio foi noticiada pelos jornais A Federação e O Independente, que apologeticamente dizia:
“Quem dirá, ao apreciar o altivo e magnífico edifício que se levanta à rua Cristóvão Colombo (Floresta), nas elegâncias da arquitetura moderna, atraindo o olhar do transeunte, que teve como começo uma casinha modesta onde um filho do trabalho fabricava em um tacho cerveja donde praticamente tirava meios de subsistência”.
Capitalismo e publicidade:
Como produto direto do sistema capitalista, onde a economia é o locus principal da produção simbólica, cresceu e expandiu-se um fenômeno que veio a tornar-se fundamental na sociedade industrial: a publicidade. É ela que mediatiza as esferas da produção e do consumo. A produção é impessoal, serial, anônima, desumana, nos dois sentidos da palavra. Já o consumo é a esfera onde o objeto adquire sentido, produz significações e distinções sociais. É a publicidade que torna o produto único, com nome, identidade, próprio para determinadas pessoas, de determinadas categorias e em determinadas ocasiões. A publicidade classifica o produto e, ao mesmo tempo, classifica pessoas, momentos e atitudes. Ela classifica o mundo.
Analisando a fachada da Cervejaria Bopp & Irmãos, eu a interpreto como um gigantesco e bem cuidado outdoor. Observe-se que o custo da decoração da fachada do prédio da cervejaria representou cerca de 10% do valor total da obra, o que demonstra a importância dada a ela. Para se ter uma ideia da magnitude da fábrica, basta dizer que sua capacidade de produção era de 30 mil garrafas de cerveja por dia, à época da sua inauguração. Além disto, a fábrica possuía um dínamo próprio, de 60 ampères, que fornecia toda a luz do edifício, dois motores de 150 e 40 cavalos de força, um elevador de 15 metros de altura, hidráulica própria, com água captada do rio Guaíba, e salas de análises químicas. O maquinário era importado da Alemanha.
O prédio – a um primeiro olhar, de tradição clássica – apresenta elementos Jugendstil, com janelas extravagantes, em semicírculo, e uma profusa ornamentação escultórica concentrada na parte superior das edificações, que, a um olhar mais acurado, subverte e ironiza a impressão inicial.
Suas esculturas são irônicas e brincalhonas: um Mercúrio escorado a uma luminária, aparentemente inebriado pelos efeitos do álcool; um elefante, o símbolo da família Bopp, em posição de coroa do prédio (onde se elevaria, por exemplo, numa igreja, uma Santa Maria; ou uma águia, num palácio real), garrafas empilhadas formando colunas na porta principal subvertem o academicismo, divertem e chamam a atenção do público.
Até o início do século XX, os anúncios eram feitos, preferentemente, em jornais. Em geral, possuíam forma e conteúdo de um comunicado direto. No final do século XIX, surgiram os primeiros trabalhos de artistas plásticos famosos, como Jacob Weingartner, e de escritores conhecidos, como na propaganda:
"Aviso a quem é fumante
Tanto o príncipe de Galles
Como o Dr. Campos Sales
Usa fósforos Brilhante"
(atribuída a Olavo Bilac).
O cômico, a caricatura e a charge foram muito difundidos no século XIX e início do século XX; e estão associados à modernidade. Os avanços técnicos de impressão disseminaram jornais satíricos em todo o mundo. Mesmo a chamada “grande arte” assumiu a intencionalidade do cômico, do caricatural, da visão crítica sobre o cotidiano, como na obra de Toulouse Lautrec. Sandra Pesavento nos diz, com precisão:
"Numa sociedade convulsionada pela modernidade, onde velhos valores eram solapados e novos surgiam, onde a cada dia se revelavam atores sociais inusitados para os quadros do ancien régime, uma combinação de talento artístico, ironia e irreverência fez explodir um novo olhar sobre o mundo".
As representações escultóricas da fachada da cervejaria realizam uma narrativa idealizada, codificada em imagens. Ela nos fala de uma outra vida. Uma vida que está fora da mesmice cotidiana. Uma vida desejável e sedutora, pautada menos pelo pensado e mais pelo vivido e sentido. Seus elementos principais, descritos a seguir, foram acrescidos de focos de luz elétrica, que faziam com que a parte esquerda do prédio pudesse ser vista à noite, mesmo a grande distância. A iluminação, além de se constituir num símbolo poderoso de modernidade, cria uma fantasmagoria: as figuras luminosas, na escuridão, evocam um ambiente de fantasia, imaginação, devaneio.
O simbolismo das representações:
O conjunto escultórico central, localizado na fachada do prédio aqui denominado 1(um) e que está mais visível ao público (situa-se no limite da calçada), é encimado pela figura de um elefante, localizado centralmente, sobre o frontão e a data do prédio, e ladeado por duas pilastras, sobre as quais estão duas estruturas globulares circundadas por crianças. Mais abaixo, na continuidade das pilastras, existem duas efígies coroadas e emolduradas por guirlandas de frutas, lúpulo e espigas de cereais; recorrentes nos dois prédios que originalmente constituíram a fábrica; e, num nível um pouco mais baixo, um gato (à esquerda) e um cão (à direita) sobressaem da parede do prédio. Neste nível está a platibanda do edifício, onde, sobre o limite da fachada frontal esquerda, erguese, sobre um pedestal, em cuja base foi colocada uma coruja, a figura de Mercúrio, acompanhada por um galo e um bode. Trata-se de um Mercúrio em
atitude displicente, com um leve sorriso, quase debochado, apoiado sobre uma luminária. Abaixo, na altura do cão e do gato, na quina do prédio, há duas efígies que, como as descritas anteriormente, estão coroadas por guirlandas de lúpulo e espigas de cereais. Porém estas, de maneira diversa daquelas, têm um aspecto mais grotesco, com olhos e lábios inchados.
A essas representações impressas na fachada do prédio 1, soma-se um relevo, situado junto à platibanda e entre as janelas dispostas à esquerda da porta: a figura de um barril, de onde sai um pequeno bode, ladeado por duas figuras infantis que seguram, no centro do barril, uma coroa, provavelmente de lúpulo e espigas de cereais.
O motivo mais relevante e original da fachada é, sem dúvida, o Elefante e, em seguida, Mercúrio. É importante destacar que Elefante e Mercúrio tornaram-se duas das principais marcas de cerveja produzidas pela fábrica.
Porém, a representação de Mercúrio na fachada é anterior à marca da cerveja, ao contrário da cerveja Elefante, que já existia anteriormente. Além disso, o fato de as cervejas se denominarem Elefante e Mercúrio não é o bastante para que se conheça o que eles significavam e a sua importância no conjunto geral das representações escultóricas da cervejaria: no entanto, elas chamavam-se Elefante e Mercúrio, e não outro nome qualquer.
Andreas Hauser (comunicação pessoal) explica que, desde o Renascimento, os programas iconográficos se apóiam em manuais onde são condensados e organizados todos os saberes sobre o mundo mitológico antigo.
Aqui, como acontece em outros lugares (ver a Warenhaus Tietz, em Berlim), a iconografia clássica é colocada a serviço de usos modernos. O Globo e o Mercúrio estão presentes tanto na cervejaria como na Kaufhaus, em Berlim (Hauser, comunicação pessoal).
Mercúrio é uma das figuras mais complexas da mitologia, convergindo para ele várias tradições: babilônica, egípcia, grega, romana. Mercúrio tem sido considerado como o símbolo da inteligência industrial e do comércio.
Provavelmente o Mercúrio foi escolhido pelo mesmo motivo que na Tietz: porque simboliza o potencial comercial da empresa. O Globo expressa este mesmo imaginário: o comércio se estende pelo mundo inteiro. Porém, e para além disto, Mercúrio possui a força de elevação e a amplitude de deslocamentos rápidos: mensageiro por excelência, ele representa a mediação entre o céu e a terra, a viagem entre os mundos. Ele representa o elemento ar e simboliza a eloqüência e a sabedoria. Mas é, também, o protetor dos ladrões, representando as formas de perversão intelectual que se encontram em todos os tipos de trapaça, habilidades maliciosas, astúcias e espertezas. Entre os atributos que acompanham o Mercúrio, é a sacolinha de dinheiro que exprime o comércio. Este atributo, se não está ausente no Mercúrio da Bopp, ao menos não é visível facilmente, o que, enfim, resulta no mesmo. Mas, com certeza, ele tem outros atributos bem visíveis: o caduceu, o chapéu alado, o galo e o bode. Estes atributos nada têm a ver com o comércio. Com seu caduceu, Mercúrio faz as pessoas dormirem ou acordarem. O bode é uma representação recorrente em todo o prédio. Simboliza a força vital da libido e a fecundidade. É um animal ritualmente consagrado a Dionísio e servia de montaria à Afrodite. O bode tem, talvez, ligação com o tipo de cerveja chamada Bock (bode). O galo é psicopompo, ser que acompanha os mortos, já que suas almas devem renascer à luz de outro mundo. Assim, ele está associado a Mercúrio, porque essa divindade é o mensageiro que percorre os três níveis do cosmo: inferno, terra e céu. O galo, junto com o cachorro (que aparece um pouco mais abaixo) e o cavalo, fazia parte dos animais psicopompos que eram sacrificados aos mortos nos rituais funerários dos antigos germanos.
Como aquele que anuncia o dia que sucede à noite, o galo está sobre os campanários das Igrejas e das torres das catedrais. Associado à serpente, como em Mercúrio, o galo marca a integração das forças telúricas, onde espírito e matéria tendem a equilibrar-se numa unidade harmoniosa. O galo corresponde, ainda, ao Mercúrio alquímico.
O Mercúrio displicente e debochado da fachada da cervejaria Bopp está muito mais próximo das viagens, das habilidades maliciosas e da busca de harmonia entre espírito e matéria, que da inteligência industrial e comercial, ainda que uma não exclua a outra.
A coruja, por sua vez, é o pássaro de Atena, símbolo do poder racional, mas também um atributo dos adivinhos: ela simboliza os dons de clarividência. Ela não faz parte da iconologia do Mercúrio. Talvez tenha sido associada a ele por ser também uma divindade de inteligência e sabedoria. E a explicação pode estar no fato, como Hauser alertou em seu depoimento, de que a embriaguez é um estado semelhante ao êxtase, em que profetas, sacerdotes etc. proferem sabedorias divinas. Este argumento é reforçado pela representação, colocada logo abaixo de Mercúrio, de cabeças com lábios inchados, com um aspecto de quem já bebeu bastante, coroadas por espigas de cevada e lúpulo.
Entre as duas cabeças, surgem talheres que, associados às demais figuras, lembram festins e fartura.
As efígies, especialmente as que estão logo abaixo de Mercúrio, mesmo consideradas as diferenças existentes nas suas representações neste conjunto, por seus atributos, remetem imediatamente a Dionísio. Deus da vegetação, da vinha, do vinho e da embriaguez (é fácil estabelecer uma ligação
direta com a cerveja: ao invés de uma coroa de vinhas, temos a de cevada e lúpulo), das frutas e das estações renovadas, Dionísio é considerado como o símbolo do esforço humano de espiritualização. O culto a Dionísio testemunha o esforço da humanidade em romper a barreira que a separa do divino. Através dele, os homens se introduzem no mundo dos deuses e transformam-se em uma raça divina. Ele representa a ruptura das inibições, das repressões, das repetições.
É o deus que preside os ímpetos que provocam a liberdade, em todas as suas formas, criador de ilusões e milagres. O transbordamento de sensualidade e a liberação do irracional seriam formas desajeitadas dos homens de procurar algo de sobre-humano.
Com relação ao elefante, duas questões se impõem: por que o nome Elefante foi escolhido como marca e por que este animal-marca foi colocado como figura principal do prédio e não qualquer outra figura alegórica que simbolizasse a cerveja.
Sabemos que este é um animal que movimenta a fantasia das pessoas ao combinar o tamanho colossal e o exotismo. Com o desenvolvimento do saber científico, todos que desejassem tematizar um animal tinham, a partir do século XIX, ao lado dos velhos manuais iconológicos, as enciclopédias científicas. Em uma delas – publicada em Stuttgart por Julius Hoffmann, em 1875 (Heinrich Rebau’s Naturgeschichte für Schule und Haus: eine gemeinfassliche und ausführliche Beschreibung aller drei Reiche der Natur) –, segundo Hauser, consta que o elefante adora beber vinho e aguardente de arroz, e que ele ingere enormes quantidades de água, chegando a 30 baldes por dia no verão. É provável que esta característica tenha pesado na hora da escolha do símbolo.
Em geral, na literatura ocidental, o elefante simboliza a força, a resistência, a prosperidade, a longevidade, a sabedoria e a boa memória. Muitas vezes tais qualidades eram atribuídas ao imperador, já que era o animal dos imperadores (lembremos o impacto causado no Império Romano, quando Aníbal realiza uma impressionante demonstração de força com os elefantes de seu exército). Essas associações positivas certamente influenciaram a escolha do elefante como símbolo não só da cerveja, como também da fábrica e, mais, da família Bopp.
Vê-se, portanto, uma espetacular vontade de impressionar. Impressionar pelos motivos, que demonstram grande orgulho de ser o que se é, mas também pela forma expressa nessa escultura “branca”, que lembra os mármores antigos, pela virtuosidade e dignidade acadêmicas. Ao mesmo tempo, o humor e a ironia presentes nas esculturas revelam um olhar que é fruto da irreverência, um olhar crítico que subverte o academicismo, mantendo os ideais clássicos, porém desvalorizando-os ao mesmo tempo.
Mas as representações não estão falando apenas de indivíduos, mas de um grupo social. Vejamos as que se seguem:
A zona do portal é bem diferente dessa zona superior do prédio que comentei. As esculturas, agora, estão situadas em uma vertente folclórica que se iniciou no romantismo (primeiro terço do século XIX) e que floresceu nas “Bierstuben”: os motivos vêm da tradição nórdica e as esculturas, ao contrário das ligadas ao mundo clássico, não são de pedra clara, mas de gesso ou madeira pintados, segundo Hauser.
O conjunto que adorna a porta frontal do prédio 1 é composto por dois barris de onde sai o lúpulo e jorra abundante espuma. Abaixo deles, nas laterais superiores da porta, dois homens, cujos atributos, especialmente o chapéu, remetem aos alemães da região de Munique, parecem sair da parede, trazendo nas mãos um caneco de cerveja. As laterais da porta são adornadas por relevos de garrafas. Este conjunto, radicalmente diferente do primeiro que foi descrito, e o único que possui cores, é composto por símbolos identitários, demonstrando a intenção de marcar uma germanidade. A evocação de traços identitários nunca é feita casualmente, mas, no dizer de Lyman e Douglas, sua manipulação é realizada como estratégia para obter certas vantagens que a apresentação da identidade étnica pode favorecer.
Sabemos que, naquele momento – diferentemente do que viria a ocorrer logo depois, com o advento da Primeira Guerra Mundial –, marcar uma origem germânica era bem proveitoso. Os teuto-brasileiros estavam, então, nos setores de ponta da economia: as primeiras indústrias foram fundadas por imigrantes alemães. Some-se a isso a ideologia do aprimoramento e branqueamento da raça, presente nos objetivos do Estado brasileiro com relação à imigração européia. Com os olhos voltados para a Europa, o consumidor local via ser-lhe oferecido um produto de origem alemã, logo incomparavelmente melhor que um brasileiro. E, mais que isto: um produto de origem européia, produzido por descendentes de europeus. Veja-se a lógica da propaganda operando: o objeto, impessoal e desprovido de sentido na esfera da produção, torna-se único, adquire um sentido, produz uma significação, realiza diferenciações sociais e estabelece hierarquias. Estabelecendo um código classificatório, este anúncio exposto na fachada da cervejaria, é um perfeito mapa de orientação social, onde aquele que vê é capaz de captar o sentido. O fato é que, como lembrou Rocha, a compra do produto é opcional, mas a do mapa é compulsória.
Entre o conjunto superior e o que está localizado na zona do portal, existem duas figuras que simulam a sustentação das pilastras. A barba e o capuz dos atlantes fazem lembrar anões, considerados seres de extrema força na mitologia, tanto germânica quanto céltica ou escandinava. Entre essas duas figuras, encontra-se uma cornucópia, de onde se derramam lúpulo e espigas de cereais.
Quanto aos anões, eles personificam as manifestações incontroladas do inconsciente e demonstram uma lógica dotada da força do instinto e da intuição, uma lógica que ultrapassa o raciocínio. Seres ligados à natureza participam dos poderes telúricos e podem ser guias e conselheiros. A eles são atribuídos, também, poderes mágicos. Os anões são entidades de transição entre o poder divino e a fraqueza humana, estão entre a luz e as trevas, entre o mundo celeste e o inferno.
A cornucópia e as guirlandas de lúpulo e espigas de cereais, que são uma variação da cornucópia mesma, são símbolo, nas tradições grecoromanas, de abundância, fecundidade e felicidade. Com o correr do tempo, tornaram-se símbolo da liberalidade, da felicidade pública, da ocasião de fortuna, da diligência e prudência (que são bases da abundância), da esperança e da caridade. As espigas, por sua vez, representam Ceres, a deusa da agricultura e da abundância. Porém, neste caso, também podem ser
vistas como uma representação da própria cevada, matéria-prima essencial da cerveja. Os dois sentidos se casam aqui. Aparentemente, a temática busca estabelecer a ligação entre os dois conjuntos escultóricos: o de vertente clássica e o de vertente folclórica.
São duas zonas, portanto: uma, superior, que se dirige a um grupo social suficientemente “cultivado” para traduzir as mensagens, e outra que fala diretamente ao consumidor comum: a publicidade não vende diretamente um produto, vende um desejo, uma promessa que o produto deve realizar. Nessa
lógica, o consumidor que bebe a cerveja da Bopp está consumindo uma cerveja “alemã”, que permite fazer-se igual a esse povo que é visto como superior: os alemães. Com isto, é possível atingir o seu saber, refinamento intelectual, alcançar um nível de superioridade, simbolizado nas esculturas localizadas nas partes mais altas do prédio e passar, assim, do plano inferior ao superior.
Além disso, é claro, esse grupo que é visto como superior não é apenas uma etnia. Existem alemães ricos e alemães pobres, patrões e empregados, poderosos ou não. A disposição dessa iconografia – com o clássico, o intelectual, o refinado, disposto na parte superior, e o popular, o folclórico, o grosseiro, colocado na parte inferior do prédio – estabelece, ainda, uma hierarquia que conhecemos bem. A mensagem é clara: cada um deve saber qual é o seu lugar e, a partir desse lugar, pode aspirar posições mais elevadas na estrutura social. E a cerveja da Bopp & Irmãos poderá conduzir esta escalada.
O terceiro conjunto considerado é aquele que compõe a ornamentação da entrada principal do prédio 2 (dois), onde se realizava a fabricação da cerveja. Esta entrada, muito mais grandiloqüente que a descrita
acima, compõe-se de uma escadaria sobre a qual se coloca uma imensa porta, ladeada por duas colunas em cujos capitéis estão duas crianças: a da direita segurando uma chave, e a da esquerda, um caneco de cerveja. Essas pequenas criaturas estão em posição de guarda, como quem protege o lugar. Sobre elas,
a figura ameaçadora de um ser com traços demoníacos, de grandes bigodes e pequenos chifres, que gargalha: um sátiro, ser associado ao culto de Baco. As duas composições são completadas por um arranjo de lúpulo, frutas e espigas de cevada. Sobre a porta, em arco pleno, uma figura humana, de traços germânicos, com uma grande boca aberta, sai de dentro de um barril de onde jorra farta espuma. Parte dessa espuma transforma-se em lúpulo e espigas de cereais que amarram, na parte central do barril, quatro canecos.
O quarto conjunto encontra-se sobre a torre do prédio 2, acima e à esquerda da porta principal. A torre possui dois andares em secção quadrada, sendo o inferior um pouco maior que o superior, e, sobre o último, um domo de secção quadrangular. Sobre os ângulos superiores do primeiro andar estão colocadas figuras humanas, em pares. Essas figuras são disformes, com ventres salientes, seios pendentes, pernas e braços abertos, em atitude quase obscena. Apoiadas em barris, onde há as inscrições Negrita, Oriente, Elefante e Oriente novamente, nome das cervejas produzidas ali, elas erguem um brinde, com um caneco nas mãos. Entre as figuras do ângulo esquerdo e do ângulo direito, está a cabeça de um sátiro, que compõe a moldura do relógio. A cena é um convite à festa e à celebração dos sentidos.
O terceiro e o quarto conjuntos completam-se e se unem, estabelecendo três frisos dispostos em alturas diferentes.
O primeiro deles, situado na parte superior da fachada, é um conjunto de elementos que fingem sustentar a platibanda, onde figura a cabeça de um bode. Este bode é substituído, no elemento que lhe alterna, pela figura de um sátiro. Novamente, seres ligados ao culto de Dionísio.
O friso central compõe-se de máscaras – logicamente, de traços caricaturais –, dispostas três a três. A máscara central é diferente das laterais.
O inferior, também composto por três elementos, apresenta nas laterais o relevo de um esqueleto de cabeça de bode. O relevo central do conjunto apresenta um esquilo entre lúpulo e frutas. Esta “caveira” de bode se relaciona, na forma como a interpreto, à representação do sacrifício deste animal a Dionísio, ritual que era realizado sempre acompanhado por cantos.
Os prédios 1 e 2 são ligados (na altura do primeiro e segundo andares) por uma estrutura, provavelmente construída após a inauguração da cervejaria.
Justamente no local onde estaria o ângulo esquerdo do prédio 2 e junto a esta estrutura de ligação, vemos uma escultura que tem sido considerada como a de Gambrinus.
Existem várias versões sobre a figura de Gambrinus, entretanto a forma como ele está representado na Bopp, com trajes de burguês medieval, mas o gorro e a espada sugerindo uma descendência de guerreiro nobre, parece indicar que se trata de Jan Primus – nome do qual teria derivado a corruptela Gambrinus –, duque de Brabante, que, além de ser um grande bebedor de cerveja, lutou ao lado de burguesia de Colônia na tentativa de livrar-se da autoridade de seu tirano arcebispo.
Esta escultura apresenta uma figura em atitude elegante, sóbria, e mesmo solene, que ergue um brinde.
Na estrutura de ligação entre os dois prédios, em sua parte mais alta e colocada centralmente, está a data de 1914, emoldurada por um conjunto de figuras, que incluem uma cabeça de aspecto demoníaco, os recorrentes lúpulo e espigas de cereais, e flores que estão arrematadas por um barril (central), em cujos lados se sucedem canecos e garrafas de cerveja.
Mais abaixo, entre as aberturas do primeiro e segundo andar, foi colocado um pequeno conjunto em relevo, cujas figuras centrais são garrafas e canecos, novamente emolduradas por uma guirlanda de lúpulo e espigas de cevada, que saem da boca aberta de uma efígie situada na parte inferior central do conjunto.
A lateral direita do prédio 1 apresenta dois frisos em relevo, situados, respectivamente, entre o térreo e o primeiro andar, e entre o primeiro e o segundo andar. O primeiro, disposto sobre as aberturas do andar térreo, segue o ritmo dessas aberturas: dois a dois ou três a três. Quando estão colocados em dupla, repetem o motivo do lúpulo e das espigas. Quando dispostos em uma seqüência de três, a figura central é constituída por um “leque” de folhas. O friso superior, situado sob as aberturas do segundo andar, repete, como o friso inferior, o ritmo das próprias aberturas. Quando colocados em dupla, mostram um ramo de cereais (cevada), que lembra a figura de uma chaminé que despeja enorme quantidade de fumaça. Quando colocados em uma série de três, a figura central é um ramo de lúpulo.
Todos os elementos escultóricos descritos acima se encontram em locais do prédio facilmente visíveis por aqueles que passam na rua, ainda que em graus diferentes: a visibilidade é maior na fachada do prédio 1, seguindo-se a fachada do prédio 2 e a estrutura de ligação entre esses dois e, finalmente,
pela fachada lateral direita do prédio 1.
Porém, existem outros elementos pouco visíveis, situados na fachada lateral esquerda do prédio 2, que precisam ser mencionados e que só poderiam ser vistos por aquelas pessoas que circulassem na fábrica. O primeiro deles está sobre um pequeno frontão. A figura central é um monograma com as letras B e I (Bopp & Irmãos), emoldurado por cornucópias (com os recorrentes lúpulo e espigas) e pela representação de máquinas.
Sobre uma pequena porta – situada sob a estrutura de ligação entre os prédios 1 e 2, e que leva a uma escada de acesso ao primeiro andar do prédio 1 –, está uma cabeça em relevo, com a inscrição St. Peter logo abaixo, emoldurada por dois peixes. Este é o único elemento diretamente ligado à religião cristã, cuja tradição liga São Pedro ao poder de abrir ou fechar as portas do céu: é ele quem possui as suas chaves. Vale a pena lembrar que São Pedro é o padroeiro do Rio Grande do Sul. Nas tradições germânicas, São Pedro é o patrono dos fenômenos meteorológicos e estes fenômenos estão ligados à produção da cerveja pelos deuses do céu. Há que se lembrar, ainda, de um tipo de cerveja produzido na Alemanha cujo símbolo é uma imagem de São Pedro.
Considerações Finais:
Os conjuntos das fachadas visíveis a todos que passam na rua remetem a um universo dionisíaco, de embriaguez-prazer-êxtase-sabedoria, numa transposição, para a cerveja, do imaginário ligado ao vinho.
De maneira oposta, as duas iconografias que são vistas apenas pelos que circulam no interior da fábrica, dizem que ali o mundo é outro. As máquinas lembram a modernidade e o progresso e, também, o trabalho que deve ser realizado para se chegar a participar de tal evolução. São Pedro está sobre a porta: poder-se-ia pensar, então, que aqui o trabalho é que leva ao “Paraíso da Modernidade”.
As figuras e os conjuntos escultóricos das fachadas frontais promovem a aproximação, a integração com o público que passa na rua: nos gestos do Gambrinus e das figuras da torre, fazendo um brinde, na atitude de um Mercúrio displicente, nas gargalhadas dos sátiros.
Na cervejaria Bopp & Irmãos, as representações escultóricas presentes nas fachadas exibem um discurso que uma burguesia então emergente fazia sobre si mesma, para si mesma, mas, também, para outros grupos sociais. Esse grande outdoor anuncia, primariamente, cerveja. Mas não qualquer cerveja.
Ela tem um nome, uma origem. Ela está ligada a um grupo social específico (burguês) e a uma etnia (germânica). Com humor e ironia, esta publicidade subverte a tradição clássica, que a burguesia local considerava um paradigma de cultura e de civilidade. Civilidade que era européia, mas, sobretudo francesa, e que a elite brasileira procurava imitar. Mas a burguesia não é, neste momento, um grupo homogêneo.
Este grande anúncio, construindo uma atmosfera desejável e sedutora, provoca no sujeito que o vê o esquecimento do processo pelo qual nascem os produtos: o desumano processo de produção. Ele também anuncia um mundo idealizado, uma vida de prazeres e abundância, onde os homens se tornam fortes, a inteligência se aguça, os sentidos são estimulados. Se estar bêbado é algo banal e cotidiano para o proletário – e a embriaguez é considerada uma atitude condenável pela moral burguesa –, aqui
ela é transfigurada, valorizada, reconhecida e incitada. No gosto do espetáculo, da ostentação e da fruição dos sentidos, exaltam-se valores como poder e inteligência, luxo e abundância, consumo e
festa. A fábrica mesma, como símbolo primeiro de progresso, sobre o qual todos os demais valores se assentam, em suas representações escultóricas apresenta um sistema de idéias e pensamentos de um setor da sociedade porto-alegrense do início do século XX. Na opulência e grandiosidade dos conjuntos, um grupo social não apenas procura vender o seu produto, mas também fala do seu poder econômico e prega seus valores mais caros. Texto de Beatriz V. Thiesen.

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