O Abuso dos Copyright Trolls - Artigo
Artigo
Texto 1:
Era um dia normal na vida da estudante de comunicação Julia (nome fictício), 19, até o momento em que ela decidiu checar seus e-mails. "Quase cuspi meu café no computador", relembra.
Ela havia recebido uma notificação extra-judicial de um escritório brasileiro, representando os proprietários intelectuais de um filme que ela supostamente havia baixado - e agora teria de "ressarcir proporcionalmente os prejuízos".
"Não baixei [esse filme], mas mesmo que tivesse, não pagaria," rebate Julia. Orientada por amigos, ela ignorou a mensagem, mas o medo ficou. "Não parei de usar programas para baixar filmes, mas agora uso um VPN [software que oculta o registro e a localização do computador] para me garantir."
Nem todo mundo, porém, tem o sangue frio da estudante. Muitos acreditam na notificação e, com medo das implicações legais, acabam pagando. A prática ficou conhecida na internet como "copyright troll".
"Não faço ideia de como chegaram até mim", diz Roberto (nome fictício), 45, que trabalha com TI. "Ao menos um dos filmes da lista eu tinha baixado, mas eu sempre uso VPN para fazer downloads. Não sou um noobie [gíria para "novato" no universo geek], então devem ter usado algum método ilegal," desabafa.
Na verdade, tudo nessa operação transita numa zona cinzenta da legalidade.
Sem provas, só com convicção
Apesar da onda de relatos recentes, essas notificações têm sido distribuídas desde outubro de 2020. Na época, mais de 70 mil pessoas foram acionadas. Se cada uma aceitasse pagar a multa sugerida de R$ 3 mil, os autores teriam faturado R$ 210 milhões.
"Alguém viu uma oportunidade de fazer um lucro fácil, que ainda não havia sido explorada, e decidiu tentar", afirmou, na época, via declaração por escrito, o Partido Pirata Brasileiro, organização focada na liberdade e proteção da privacidade na Internet (mas que não é um partido político oficialmente).
O PPB se prontificou a oferecer assistência jurídica gratuita às vítimas e segue, até hoje, como um dos principais grupos de vigilância contra os copyright trolls.
A recomendação é uma só: "Ignore as mensagens, não faça o que eles pedem, não ceda, não pague, não caia no jogo psicológico", afirma o PPB em seu site.
Paulo Rená, professor e pesquisador especializado em direito digital, concorda. "Não é seguro atender a tais pedidos, feitos sem prova de titularidade legítima de direitos, e mesmo sem a prova efetiva de que os filmes foram baixados", assegura.
Culpa no cartório?
"A conduta em questão é muito bem caracterizada com o nome troll, porque é um abuso estratégico, um comportamento ameaçador que visa causar terror", acrescenta Rená. "Troll" é uma gíria da internet para usuários anônimos com comportamento agressivo.
O problema, no Brasil, está na outra metade no nome: "copyright", termo em inglês para direito de propriedade intelectual sobre uma obra artística.
"A lei brasileira de direitos autorais é de 1998. Ou seja, está desatualizada,não fala sobre a Internet nem menciona especificamente downloads", diz Raquel Saraiva, fundadora do Instituto de Pesquisa de Direito e Tecnologia do Recife. Ao invés disso, a lei se refere à "reprodução" — como na cópia e armazenamento de obras.
André Houang, pesquisador do InternetLab e coordenador da seção de direitos autorais da Creative Commons Brasil, afirma que o Congresso tem discutido atualizar a Lei de Direitos Autorais. Porém, estas ações parecem ser um teste para ver "como as autoridades e o público reagirão, e depois propor determinadas mudanças à lei em seus interesses".
De qualquer jeito, baixar filme ainda é ilegal, correto?
"O uso de um trabalho intelectual sem a permissão do detentor dos direitos é ilegal, mas, quando não tem fins lucrativos, geralmente não se transforma em uma ação judicial", diz Omar Kaminski, advogado especializado em internet, novas tecnologias e direitos autorais.
Os esforços geralmente se concentram contra quem lucra com os downloads ilegais, por meio de anúncios nos websites onde estão disponíveis ou cobrando pelo acesso ao material protegido.
Dados ilegais?
Numa reviravolta digna de Hollywood, quem pode estar infringindo a lei por acessar algo que não é seu são os escritórios de advocacia. Afinal, como eles obtiveram os dados de quem supostamente baixou os filmes? Eles não deveriam estar protegidos pela Lei Geral de Proteção de Dados, de 2018?
Na carta enviada aos acusados, o escritório Kasznar Leonardos afirma que eles haviam sido rastreados porque os arquivos baixados continham um recurso antipirataria chamado GuardaLey Infringement Detection System, desenvolvido pela Bunting Digital Forensics, uma consultoria de exames forenses digitais.
Porém não há nenhuma menção a esse recurso no site da Bunting. E GuardaLey, na verdade, é uma outra empresa, sediada no Reino Unido. A Tilt, a Kasznar se limitou a enviar uma nota, via assessoria de imprensa:
"Kasznar Leonardos Advogados informa que presta assessoria jurídica a seus clientes e mantém dever de confidencialidade em relação às informações solicitadas. No mais, reitera que o uso de torrent para realizar o download e o compartilhamento não autorizados de obras intelectuais são condutas que violam direitos autorais, sujeito a penalidades previstas na legislação brasileira."
Para Yasodara Córdova, ativista e pesquisadora sobre privacidade no Centro Ash para Governança Democrática e Inovação, em Harvard, a explicação de como o escritório obteve os dados não é convincente.
"Não temos como acessar o código forense e as provas. Não temos a capacidade de analisar se houve fraude" explica. "Eles podem simplesmente ter rastreado algum blog que compartilha torrents e foram atrás de quem os acessou".
Segundo o PPB, o escritório de advocacia processou a operadora de internet Claro SA, exigindo que a empresa fornecesse informações pessoais relacionadas a IPs (o "endereço" individual de cada computador).
Em nota conjunta, o Instituto de Defesa do Consumidor, o Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife e outras organizações criticaram a empresa de telefonia por facilitar o acesso a dados de usuários, em desrespeito à LGPD.
Consultada por Tilt, a Claro alega que "cumpriu ordem judicial do Tribunal de Justiça de SP, nos termos da Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet), que obriga o provedor responsável pela guarda a disponibilizar informações solicitadas mediante ordem judicial. Portanto, a operadora forneceu única e exclusivamente ao TJSP as informações determinadas, que ficam então sob responsabilidade da Justiça."
Ainda assim, para Kaminski, o método está sujeito a falhas.
"Tenho visto muitos erros de transcrição em petições e mandatos. Você só precisa errar um algarismo do IP para pegar a pessoa errada. Imagine a polícia batendo em sua porta com um mandado alegando que você é um divulgador de pornografia envolvendo menores de idade, porque eles pegaram o IP errado", afirma.
Filmes visados:
As cartas parecem focar principalmente em filmes de ação recentes, como Rambo: Até o Fim (2019), Hellboy (2019) e Invasão ao Serviço Secreto (2019).
Foi esse último que rendeu uma notificação para Mario (nome fictício), profissional de marketing que nunca viu o filme ou sequer costuma baixar torrents. "Não tenho o hábito. O que eu fiz foi acessar sites como o Popcorn Time, que transmite torrents", explicou.
"No início me assustou um pouco, porque é uma carta de um escritório de advocacia. Depois, fiquei mais curioso. Hoje em dia lidamos com tantas mensagens e e-mails falsos que já estamos meio que preparados para tudo", disse.
No caso dele, o escritório foi o Márcio Gonçalves Advogados. Assim como a Kasznar, o escritório não retornou pedidos de entrevista feitos por Tilt.
Segundo um porta-voz do Partido Pirata Brasileiro, em muitos casos o assédio se perpetua por um bom período, inclusive com renegociações do valor da multa.
"Eles pedem os mesmos R$ 3 mil, mas se a pessoa não cede, o escritório tenta forçar acordos, telefonando, enviando e-mails e até mensagens via WhatsApp, dando 'prazos' e ameaçando com uma ação judicial", afirma. "Quando não recebem resposta, oferecem uma nova oportunidade. Ouvimos até que eles ofereceram acordos por R$ 500."
Método descartado:
Nos EUA, infrações individuais ao copyright raramente vão parar nos tribunais. O custo não compensa e, muitas vezes, a imagem dos detentores do direito é que fica arranhada - o grande estúdio hollywoodiano milionário perseguindo uma pessoa comum.
Rená explica que perseguir usuários é um "tiro no pé, porque as pessoas ficariam a favor de quem baixa, porque a lei não tem amparo social. Ela existe, ela está vigente, mas ela não faz sentido."
Houang concorda, apontando que "diversos estudos, inclusive um recente da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, têm mostrado que uma das melhores formas de se combater a pirataria é facilitando o acesso legal a mais conteúdos online," e que a tática empregada pelos copyright trolls é "além de abusivo e retrógrado, ineficiente."
Caso você receba alguma notificação desse tipo, as recomendações dos especialistas são:
Não responda nem entre em contato;
Consulte um advogado;
Relate o ocorrido para o Partido Pirata Brasileiro copyright@partidopirata.org.
Texto 2:
A pandemia reavivou um modelo de negócio nos setores voltados à propriedade intelectual (PI) que tinha perdido bastante força nos últimos anos. Trata-se da tática de algumas empresas de adquirir ou usar agressivamente direitos de propriedade intelectual para ameaçar terceiros de processos judiciais, conseguindo um retorno financeiro por meio de acordos.
Copyright, trolls e notificações duvidosas:
Os praticantes dessa ação bastante questionável, que vai contra os objetivos do direito autoral sem ser formalmente ilegal, passaram a ser conhecidos internacionalmente como "trolls de direitos autorais" ou "trolls de patentes". Apesar de esse modelo de negócios ter sofrido derrotas monumentais entre 2009 e 2015, há alguns anos acompanhamos um ressurgimento dessa estratégia em vários países, incluindo o Brasil.
Resumidamente, empresas como a Fallen Productions e a Copyright Management Services (CMS) passaram a contratar escritórios para enviar notificações extrajudiciais ameaçando indivíduos que teriam supostamente baixado filmes por torrent. Essas notificações sugeriam a realização de um acordo no valor de R$ 3 mil para evitar um processo judicial.
Vale notar a similaridade com a atuação de trolls de direitos autorais conhecidos. Entre outros pontos, são entidades relativamente obscuras, cujo nome aparece em mecanismos de busca quase exclusivamente para relacioná-las com os processos por direitos autorais.
A CMS, especialmente, é uma troll globalmente conhecida, inclusive por litigar sem ser a verdadeira titular do direito alegado, atuando há anos em outros países. Escritórios respeitados que trabalharam com ela chegaram até a ser acusados de fraude, possivelmente por não terem averiguado diligentemente a existência de um direito de seus clientes.
Críticas a trolls e respostas:
À época, diversas entidades brasileiras ligadas à propriedade intelectual ou aos direitos digitais apontaram múltiplos problemas nessas notificações.
A lista relacionada na nota conjunta e em outras publicadas na mesma época é grande: erros técnicos, incoerências entre as diferentes cartas enviadas, contatos telefônicos e endereços eletrônicos desvinculados oficialmente dos escritórios notificantes, uso de ferramentas técnicas obscuras, possíveis meios ilícitos de obtenção de provas e violações de leis sobre proteção de dados brasileiros, entre outros.
Outro ponto questionável era a declaração sobre um suposto intuito pedagógico das notificações em relação ao público consumidor brasileiro, quando o propósito econômico se destacava com tanta intensidade.
Depois dessa nota, a estratégia dos trolls foi alterada. Vários dos elementos duvidosos das primeiras cartas foram corrigidos, inclusive com a redução do valor do acordo ou ocultando-o. Alguns artigos de opinião e reportagens apareceram para fundamentar a atuação dos copyright trolls, aprofundando o medo dos notificados.
Pelo menos uma chegou a divulgar informações que eram, no mínimo, ambíguas; como a afirmação de extensão do parágrafo único do art. 103 da Lei de Direitos Autorais para infrações que não eram edições de obras. Mais gravemente, na matéria citada, normaliza-se um tipo de colheita de prova vedada pelo ordenamento brasileiro por ser em geral proibida a indução ao cometimento do ato ilícito para obter material probatório tanto no âmbito penal quanto no cível.
O escritório Kasznar Leonardos, um dos mais conhecidos na área de propriedade intelectual do Brasil, parece ter reduzido sua atuação direta nas notificações. Representando as mesmas empresas, outros escritórios, cada vez menores e menos conhecidos, passaram a ser os principais notificantes, com estratégias de cobrança ainda mais agressivas, a exemplo de ligações constantes em horários não comerciais.
Essas cobranças continuavam mesmo quando os notificados se dispunham a apresentar provas de que não poderiam ter sido eles - como casos em que haviam comprado o filme alegadamente pirateado alguns dias antes, ou de pessoas com baixo conhecimento tecnológico, idosos, por exemplo, que não tem familiaridade suficiente com informática para cometer os atos dos quais foram acusados. Deve-se lembrar, ainda, que não é recomendado o simples uso do IP e outros dados de geolocalização para identificar um indivíduo na rede, sendo necessárias, para tanto, outras diligências.
Panorama dos trolls pelo mundo
Em outros países onde essas mesmas empresas atuaram, as ameaças se mostraram o verdadeiro foco do modelo de negócio, evitando o protocolo de ações judiciais, presumivelmente pela probabilidade de derrota no Judiciário. O mesmo está acontecendo no Brasil, pelo menos por enquanto.
Os trolls de direitos autorais e seus advogados já sofreram derrotas e sanções judiciais de diferentes tipos. Perderam gravemente até em países conhecidos pela forte proteção dos direitos intelectuais, como a Dinamarca e os Estados Unidos (EUA), no início da década passada e recentemente.
A Suprema Corte canadense há alguns meses levantou barreiras processuais para esse tipo de judicialização massiva, no mesmo sentido dos Judiciários britânico, australiano e cingapuriano. Mesmo jurisdições mais lenientes com trolls, como a União Europeia, vedaram notificações que fossem abusivas, desproporcionais ou injustificadas.
Download individual é crime?
O receio de um revés caso as ações sejam ajuizadas, como já ocorreu em outras jurisdições, é justificado. Além das possíveis infrações à LGPD e dos potenciais meios ilícitos de colheita de prova, o download para finalidades individuais sem intuitos lucrativos não é crime na legislação brasileira, pelo menos na interpretação mais direta da lei. Consultando o Código Penal:
Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: [Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa].
§ 1° Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente: [Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa].
[…] § 4° O disposto nos §§ 1°, 2° e 3° não se aplica quando se tratar de exceção ou limitação ao direito de autor ou os que lhe são conexos, em conformidade com o previsto na Lei n° 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, nem a cópia de obra intelectual ou fonograma, em um só exemplar, para uso privado do copista, sem intuito de lucro direto ou indireto.
O parágrafo primeiro determina que é necessário que haja intuito de lucro direto ou indireto no caso específico de reproduções totais ou parciais, categoria em que estão enquadrados os downloads de obras digitais para o direito autoral.
O caput do art. 184 parece existir para enquadrar violações não descritas nos parágrafos que o seguem, como as de direito morais. Para essa categoria de direitos autorais, o intuito lucrativo é quase irrelevante pela sua natureza de direitos da personalidade (não patrimoniais).
Isso não é uma mera opinião: consta expressamente das justificativas do PL 2681/1996, convertido posteriormente na Lei n. 10.695/2003, que dá a redação atual dos dispositivos do Código Penal aqui analisados. O ponto 12 da Exposição de Motivos declara que "Além disso, o caput deste artigo [art. 184] cogita das violações de ordem moral, não daquelas que trazem reflexo econômico."
Olhar para o §4 sugere ainda outra interpretação excludente de tipicidade. Ao interpretar a última frase desse dispositivo como algo que se refere apenas ao §1, §2 e §3, o intérprete necessariamente caíria em redundância. A reiteração da frase "intuito de lucro direto ou indireto" poderia ser justificada, teleologicamente, por dois caminhos: ou seria um erro do legislador, ou estaria ali para cumprir uma função que ultrapassa o disposto nos parágrafos anteriores e passar a englobar também o caput, devendo ser lido como um dispositivo separado da primeira metade do §4.
A afirmação categórica das primeiras levas de notificações extrajudiciais, de que os downloads seriam crimes, parece ser, acima de tudo, uma forma de aterrorizar os notificados para estimular os acordos em valores elevados.
Argumentos contra o enquadramento como crime:
É importante destacar que é comum encontrar posições de que esses downloads seriam um crime, e que elas não são infundadas. Existe uma disputa interpretativa no sentido de que o download individual se enquadraria no caput do art. 184, que seria uma norma penal em branco, e os parágrafos seguintes seriam meras qualificadoras. De forma um pouco mais forçada, alguns argumentam que "lucro indireto" poderia abarcar a intenção de não gastar na apreciação do bem original.
A extensão do conceito de "lucro indireto" não merece muita atenção, mas a outra sim, por ter alguns bons fundamentos. No entanto, ela permanece sendo provavelmente equivocada por diversas razões.
Em primeiro, porque desconsidera o direito penal como ultima ratio, tirando o caráter de sanção excepcional, uma natureza já apontada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) diversas vezes, como no habeas corpus. Embora o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tenha firmado tese de que não se aplica o princípio da adequação social ou da insignificância aos casos de violação de direitos autorais com intuito lucrativo, tal enquadramento não foi firmado para os downloads individuais para uso privado.
Em segundo, porque parece pressupor que o "sem intuito de lucro direto ou indireto" do parágrafo 4º seria um erro de técnica legislativa, uma mera repetição dos parágrafos anteriores, adicionando um elemento novo (cópia de um exemplar para uso privado) que na prática em nada afeta os parágrafos a que se refere.
Em terceiro, e talvez mais importante, porque é uma interpretação em prejuízo do réu, contrariando o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, incorporado ao ordenamento brasileiro pelo Decreto n. 4388/2002. Em seu art. 22.2, o estatuto determina que "a previsão de um crime será estabelecida de forma precisa e não será permitido o recurso à analogia. Em caso de ambiguidade, será interpretada a favor da pessoa objeto de inquérito, acusada ou condenada".
Em quarto, ignorar que os parágrafos do art. 184 já tratam especificamente algumas categorias de violações seria uma interpretação extensiva que, ao menos aparentemente, desvirtua a mens legis (vontade da lei), o que foi proibido pelo STF em 2011 no Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) 106481.
Essa interpretação criminalizadora ainda encontra obstáculos no posicionamento de tribunais brasileiros que já decidiram sobre o tema, mais de uma vez, mesmo em casos de centenas de produtos piratas. Vale ressaltar, por outro lado, que eles não analisaram explicitamente o crime a partir do caput do art. 184. Segundo um dos acórdãos que exige o intuito lucrativo, é possível afirmar que não seria possível a desclassificação para o tipo que não exige esse intuito, mencionando a existência de algumas implicações contrárias, mas citando só a necessidade de proceder por meio de queixa.
Barreiras para outros tipos de sanção:
Não ser crime não impede que os titulares de direitos tentem o caminho judicial da indenização cível. Entretanto, por motivos que poderemos abordar em outra coluna, há chances razoáveis de as indenizações serem concedidas pelos tribunais em valores inferiores ao que é pedido nas notificações extrajudiciais ou que existam dificuldades para executar. Possivelmente, em quantias que mal paguem o trabalho dos advogados contratados, assim como as custas judiciais em situações nas quais a pessoa processada seja hipossuficiente.
Efeitos nos sistemas de direitos autorais:
De qualquer forma, o grande problema com os trolls de direitos autorais não é a legalidade estrita de suas ações ou ameaças, e sim os efeitos que eles têm no sistema de direito autoral, em especial nos incentivos para criatividade.
Enquanto há argumentos honestos de que essas ações são justamente uma forma de proteger as finalidades da propriedade intelectual e um ambiente cultural pujante, estudos sérios sobre a atuação dos trolls, publicados em algumas das mais relevantes revistas do mundo, asseveram que o contrário é verdade.
Esses estudos apontam como os trolls se utilizam dos institutos de direitos autorais de maneira formalmente correta, mas materialmente abusiva, focando tanto os esforços quanto os investimentos envolvidos e a economia criativa principalmente em litigância em vez da criação de novas obras.
Há uma corrupção dos fins do direito autoral enquanto se invoca sua proteção. O potencial de danos ao sistema é grave e faz pouco sentido combater um elemento danoso (a violação das normas jusautorais) com outro.
Ilicitude da atuação dos trolls:
Aprofundar a discussão na esfera jurídica sobre a questão é fundamental, inclusive para orientação dos tribunais em futuros julgamentos. A atuação dos trolls é questionável mesmo sob as lentes mais estreitas do Direito, e é preciso ter a maior clareza possível sobre isso.
Não é necessário argumentar moralmente sobre os efeitos da pirataria em um país de baixa renda como o Brasil. Apesar de estar se consolidando o entendimento sobre o que diminui a pirataria (não são normas mais duras de direito autoral, mas sim mercados mais acessíveis e eficientes), não é preciso chegar a esse ponto.
A defesa da propriedade intelectual por meio do terror já se mostrou falha inúmeras vezes no passado, gerando medo e raiva, impedindo que a população média a valorize pela razão correta, que seria: seu papel fundamental no fortalecimento de um ambiente cultural fértil e de inovações tecnológicas, com o sistema equilibrado e bem-planejado.
A atuação dos trolls de direitos autorais não raramente ultrapassa a zona cinzenta da licitude. Isso já foi demonstrado em outros países no passado e parece se repetir no Brasil agora. Para evitar um aprofundamento dos danos causados e impedir que a imagem da propriedade intelectual em nosso país continue manchada por ações predatórias, devemos nos dedicar a manter o debate vivo sobre informações imprecisas ou equivocadas, sejam elas de boa-fé, sejam intencionais.
Texto 3:
Há décadas, diversos setores da economia são drasticamente afetados pela realização de cópias não autorizadas de produtos devidamente registrados, comercializados a preços infinitamente mais baratos, como no caso da falsificação, afetando diretamente os produtores de conteúdo de filmes, seriados e músicas, entre outros players do mercado.
Ao mesmo tempo, vivenciamos nas últimas décadas uma evolução absurdamente rápida dos meios tecnológicos. Entre eles, os serviços conhecidos como peer-to-peer (P2P — em tradução livre, pessoa a pessoa), que cresceram de forma exponencial. Os serviços de P2P funcionam através da internet, na qual os usuários não só realizam o download disponibilizado por outros usuários, como também passam a disponibilizar o arquivo para que outros também o façam. Automaticamente, a pessoa passa de usuária a servidora do serviço, facilitando — e muito — a disseminação da atividade de compartilhamento de conteúdo pirateado.
Por óbvio, essas empresas que têm seus direitos autorais violados podem seguir em busca de soluções (sejam judiciais ou não) para que terceiros cessem essas atividades de distribuição de conteúdo não autorizado. Entretanto, o que se discute atualmente é o limite entre a proibição de qualquer reprodução integral ou parcial da obra e o download de um filme efetuado no conforto do lar de um usuário que não pretende auferir qualquer tipo de lucro com este ato. Debate-se ainda até onde os detentores destes direitos autorais podem ir em busca de sanção para o que consideram violado.
Nesse contexto, o artifício dos copyright trolls vem sendo utilizado por diversas empresas. Esse tipo de prática, já existente ao redor do mundo, e principalmente nos Estados Unidos da América e na Alemanha, há alguns anos, consiste na atuação de empresas/agentes que enviam notificações extrajudiciais (muitas vezes contendo ameaças de ação judicial) acusando o notificado de violação de direitos autorais em decorrência de compartilhamento de conteúdo não autorizado. Muitas vezes esses agentes que notificam são pessoas ou empresas oportunistas que não possuem qualquer relação com o titular dos direitos autorais do objeto da notificação.
Em resumo, segundo Sag e Haskell (2018), em seu artigo, o trabalho deste tipo de agente se baseia em: 1) monitorar o compartilhamento online e coletar evidências de possíveis infrações; 2) registrar infração de direitos autorais por indivíduos não identificados, uma vez que se sabe somente seus endereços de internet protocol (IP); 3) buscar uma ordem judicial para obrigar ao provedor de internet as informações referentes aos IPs reclamados; 4) contatar os detentores dessa conta e ameaçá-los com ações indenizatórias de valores altos, mas oferecendo acordos por valores mais baixos; 5) realizar tantos acordos quanto possível e abandonar os demais; e 6) repetir.
Dessa forma, esses agentes trabalham pressionando possíveis infratores de direitos autorais de terceiros, com bases em ameaças de litígios, chegando a auferir enorme recompensa financeira através de acordos realizados por cidadãos psicologicamente intimidados. Em suma, a única preocupação dos copyrights trolls é a busca pelo dinheiro através de ameaças de processo judicial, ou outras atitudes particularmente agressivas, muitas vezes mesmo que sem qualquer embasamento jurídico para tal.
O primeiro caso conhecido como copyright troll ocorreu no ano de 1842, quando Harry Wall criou, na Inglaterra, o "The Author’s Copyright Protection Office" (em tradução livre: "O Escritório de Proteção de Direitos Autorais do Autor"), por meio do qual arrecadava taxas de reproduções não autorizadas, em razão de ameaças feitas com base na legislação vigente à época conforme apresentado por Boutsikaris.
Apesar de essa prática não ter surgido recentemente, é nítido que esse tipo de atuação ganhou mais espaço como um modelo de negócios lucrativo em razão do desenvolvimento da tecnologia. Dessa forma, tornou-se muito mais simples que, mesmo sem possuir qualquer direito sobre uma obra, uma empresa/pessoa identifique a realização de downloads de obras audiovisuais (por exemplo), e contate o(s) titular(es) de seus direitos autorais, oferecendo seus serviços para que essas violações cessem. Resta nítido, portanto, a ascensão desse tipo de prática, e que, assim como qualquer outra tendência mundial, não tardaria muito para que chegasse ao Brasil.
A Lei de Direitos Autorais brasileira (Lei nº 9.610/98) determina, em seu artigo 28, que "cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica". Do mesmo modo, o artigo 5º, inciso XXVII, da Constituição Brasileira de 1988 tutela o direito de exclusividade dos autores na utilização, publicação ou reprodução de suas obras. Ademais, o Brasil é signatário de diversos tratados internacionais que abordam o assunto, como a Convenção de Berna e Convenção de Genebra, entre outros.
O artigo 7º da Lei nº 9.610/98 prevê que algumas obras são passíveis de proteção, tais como os textos de obras literárias, artísticas ou científicas, obras fotográficas, composições musicais, as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, entre outras.
Entre as categorias de obras que se enquadram sob a égide dos direitos autorais é possível encontrar as audiovisuais e cinematográficas. Dessa forma, caberia somente aos titulares dos direitos autorais de filmes, seriados e qualquer outro tipo de obra audiovisual e/ou terceiros autorizados a sua disponibilização, em conformidade com o que determina o artigo 28 da Lei nº 9.610/98.
Contudo, como apontado anteriormente, a internet auxiliou cabalmente a disseminação de informações na internet, incluindo produtos que antigamente só eram possíveis de ser acessados por meio físico (CD, DVD, fitas etc.), surgindo, portanto, a pirataria digital.
Segundo Van Der Sar (2014), do TorrentFreak, no ano de 2014, o Brasil foi o quarto país no mundo a realizar o maior número de downloads de filmes e séries, atrás apenas de Rússia, Estados Unidos e Itália. Ainda, um estudo realizado pela Universidade de Amsterdã em 2018 revela que 99% dos brasileiros usuários de internet consumiram conteúdo pirata através de canais legais.
No ano de 2020 esses números aumentaram significativamente, tendo em vista as medidas de isolamento adotadas pelos governos ao redor do mundo como consequência da pandemia do novo coronavírus. Segundo estudos da Muso (2020), empresa especializada em pirataria digital, o consumo de séries e filmes de forma ilegal chegou a até 70% em alguns países.
Demartini (2020), do Canaltech, menciona que no segundo semestre de ano passado alguns usuários de serviços P2P teriam recebido uma notificação extrajudicial enviada por um escritório brasileiro especializado em propriedade intelectual a respeito de possíveis downloads realizados sob a referida modalidade, e propondo a realização de um acordo, mediante o pagamento de R$ 3 mil, para evitar a judicialização do assunto. Assim, os dados dos supostos infratores foram fornecidos após o ajuizamento de uma ação de produção antecipada de provas pela empresa notificante contra uma empresa de telefonia e provedora de internet. Após obtenção dos referidos dados, notificaram os possíveis usuários, alegando possuírem o direito exclusivo de disponibilizar a obra intelectual e que através de um programa de combate à pirataria teriam identificado que o IP daquela residência teria disponibilizado, via Torrent, a obra intelectual em comento.
Vejamos que, conforme explicado anteriormente, qualquer usuário das plataformas P2P, a partir do momento que efetua download de um arquivo, também vira hospedeiro e o disponibiliza automaticamente para outros usuários sem auferir qualquer contrapartida econômica.
Nesse contexto, importante destacar que o Código Penal estipula em seu artigo 184 como crime, passível de detenção de três meses a um ano, ou multa, "violar direitos de autor e os que lhe são conexos". Segundo o §1º do mesmo artigo, esta pena poderá ser de dois a quatro anos em casos que existir:
"(...) Reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem o represente".
Uma nota conjunta, divulgada em 4 de janeiro deste ano e assinada por Coalizão Direitos na Rede, Creative Commons Brasil, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), Grupo de Estudos em Direito Autoral e Industrial — UFPR (Gedai), Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Digital e Direitos Culturais da Ufersa (DigiCult) e Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec) ressalta o que chamam de fundamentos duvidosos dessas notificações, além de afirmarem que esse tipo de ação não é efetiva, bem como não há qualquer base jurídica e técnica para um processo.
Conclui-se, portanto, pela necessidade de uma melhor e mais atual legislação em respeito às novas tecnologias, seus usos e formas de compartilhamento. Sem dúvidas, esses ataques passaram a ocorrer com mais frequência em decorrência de uma estrutura normativa que merece certa atualização.
Texto 4:
Usuários brasileiros estão recebendo notificações de multa por baixar torrents. Os e-mails vêm de um escritório de advocacia que representa um estúdio grande de Hollywood no Brasil, responsável por lançamentos como Rambo: Até o fim e Hellboy. Nas mensagens, há um alerta de que, caso não seja identificado o pagamento até a data de vencimento estipulada, o estúdio norte-americano deverá entrar na Justiça contra os usuários — e avisa: a possibilidade de indenização a ser paga pode chegar a R$ 60 mil.
Mas não se assuste: especialistas dizem que é necessário ter cautela antes de depositar qualquer dinheiro, para não alimentar os “copyright trolls”, ou trolls de direitos autorais. Para entender melhor essa história, o Tecnoblog investigou o caso mais a fundo — os detalhes, você acompanha nas linhas a seguir.
É multa ou golpe?
Uma dessas notificações do estúdio de Hollywood foi recebida pelo usuário Leopaulista17, que pediu conselhos de como lidar com a situação em um fórum do Reddit.
O brasileiro foi autuado pelo Guerra Associados Advogados por baixar o filme Rambo: Até o fim, que estreou em 2019. O escritório de advocacia com sede no Rio e em Porto Alegre (RS) representa os estúdios da Millennium Media desde 2020. A produtora é dona de mais obras conhecidas, como Hellboy e Invasão do Serviço Secreto.
Usuários levantaram suspeitas de que a notificação poderia ser um golpe de phishing — quando o golpista usa links para a vítima entregar informações pessoais — bem elaborado. Mas, ao entrar em contato com o Guerra Advogados Associados, o Tecnoblog confirmou que o escritório de fato é o autor do e-mail.
Em uma procuração presente no site aviso.net, usado para negociar as indenizações recebidas pelo Guerra Advogados, o estúdio de Hollywood escolheu a firma para agir em seu nome no Brasil “apenas em conexão com assuntos antipirataria”. O escritório deve defender a propriedade intelectual da empresa conforme a Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998).
Os advogados devem agir no caso da violação de direitos autorais dos filmes:
Hellboy;
Rambo: até o fim;
Posto de combate;
Fúria em alto mar;
Invasão do Serviço Secreto;
Dupla Explosiva;
Dupla Explosiva 2 — E a Primeira-Dama do Crime;
Jolt;
A Profissional;
Anna O Perigo tem Nome;
Gong Li Project;
The Asset.
A procuração da Millennium Media garante ao Guerra Advogados autorização para negociar indenizações, em acordos que dizem respeito a infrações cometidas “dentro e fora da Corte”. Eles podem ser concluídos antes que policiais, promotores ou outras autoridades interfiram no caso, a fim de coletar fundos para o estúdio.
No e-mail enviado ao usuário do Reddit, os advogados deixam claro que a medida é extrajudicial, ou seja, é feita fora do âmbito processual da Justiça. Há a possibilidade de negociar o pagamento, desde que seja acima do valor mínimo de R$ 250. Mas está escrito que essa “é uma liberalidade que lhe é oferecida uma única vez e por prazo determinado pela titular dos direitos autorais”.
Caso o usuário não realize o pagamento 15 dias após a notificação, o valor mínimo da indenização aumenta em 50%, para R$ 375. Se novamente não houver resposta por mais 15 dias, será necessário pagar o dobro.
Mas a notificação não explica em detalhes do que acontece se o usuário ignorá-la por completo. A página do aviso.net afirma que, depois dos 30 dias de prazo para pagamento, o caso terá o envolvimento direto dos advogados da Millennium Media. A partir da análise das infrações do usuário, os representantes do estúdio enviam uma intimação pelos correios para que seja paga uma multa de R$ 3 mil.
Caso essa nova indenização seja ignorada, o estúdio pode processar o usuário. Ao levar o caso ao Judiciário, a produtora pode exigir o pagamento de até R$ 60 mil. A multa média em processos desse tipo é R$ 48 mil, como informa a página aviso.net.
Tecnologia P2P é usada para calcular multa:
De acordo com o site, o cálculo feito para chegar ao valor da indenização é feito com base não apenas no download de torrent feito pelo próprio usuário, mas também por outros que usaram seu computador como servidor para baixar o arquivo, em conexão P2P.
Como cada licença cobrada pelo estúdio por exibição do filme custa R$ 250, os advogados estipulam que outras 30 pessoas baixam filmes ilegais a partir de um único download. Em uma semana, esse prejuízo chega a R$ 41 mil para os estúdios.
A conexão P2P é comum aos arquivos de torrent, e geralmente habilitada por padrão para que mais usuários se conectem automaticamente ao conteúdo presentes na aplicação executava pelo dispositivo do usuário. Pelo P2P, é criada uma rede de download e upload, aumentando a possibilidade de se obter um arquivo.
Pedro Lana, advogado e pesquisador do GEDAI (Grupo de Estudos em Direito Autoral e Industrial) da UFPR, diz que a presença da conexão P2P não significa que o usuário está ativamente distribuindo o arquivo pirata para outros que se conectam ao seu computador. Segundo ele, a forma como o estúdio de Hollywood — considerado um copyright troll — usa a conexão P2P para aumentar a multa a ser paga na Justiça é forçada e não encontra respaldo legal:
“Os notificantes não sabem quantas pessoas tiveram acesso ao arquivo, quanto por cento do arquivo foi baixado a partir daquela conexão específica e nem se essa função não foi desabilitada. Este é mais um dos argumentos que aparece com o único intuito de criar um clima de medo e fazer parecer que a indenização cabível é muito maior do que ela realmente seria.”
15 mil brasileiros notificados pelo estúdio de Hollywood:
O usuário contou no post do Reddit que recebeu o e-mail no dia 10 de janeiro de 2022, mas ele não está sozinho. No Twitter, outras duas usuárias dizem ter recebido outras notificações da Millennium Media; ambas chegaram no dia 3 do mesmo mês.
O Guerra Advogados Associados confirmou ao Tecnoblog que, entre 2021 e 10 de janeiro de 2022, aproximadamente 15 mil brasileiros receberam e-mails de notificação do estúdio de Hollywood por pirataria.
O autor do post no Reddit nota que a notificação extrajudicial enviada em nome do estúdio de Hollywood continha alguns de seus dados pessoais, como endereço completo, IP, data e hora do download do torrent pirata e mais o provedor de sinal de sua casa — no caso, a NET Virtua.
Rambo: até o fim;
Posto de combate;
Fúria em alto mar;
Invasão do Serviço Secreto;
Dupla Explosiva;
Dupla Explosiva 2 — E a Primeira-Dama do Crime;
Jolt;
A Profissional;
Anna O Perigo tem Nome;
Gong Li Project;
The Asset.
A procuração da Millennium Media garante ao Guerra Advogados autorização para negociar indenizações, em acordos que dizem respeito a infrações cometidas “dentro e fora da Corte”. Eles podem ser concluídos antes que policiais, promotores ou outras autoridades interfiram no caso, a fim de coletar fundos para o estúdio.
No e-mail enviado ao usuário do Reddit, os advogados deixam claro que a medida é extrajudicial, ou seja, é feita fora do âmbito processual da Justiça. Há a possibilidade de negociar o pagamento, desde que seja acima do valor mínimo de R$ 250. Mas está escrito que essa “é uma liberalidade que lhe é oferecida uma única vez e por prazo determinado pela titular dos direitos autorais”.
Caso o usuário não realize o pagamento 15 dias após a notificação, o valor mínimo da indenização aumenta em 50%, para R$ 375. Se novamente não houver resposta por mais 15 dias, será necessário pagar o dobro.
Mas a notificação não explica em detalhes do que acontece se o usuário ignorá-la por completo. A página do aviso.net afirma que, depois dos 30 dias de prazo para pagamento, o caso terá o envolvimento direto dos advogados da Millennium Media. A partir da análise das infrações do usuário, os representantes do estúdio enviam uma intimação pelos correios para que seja paga uma multa de R$ 3 mil.
Caso essa nova indenização seja ignorada, o estúdio pode processar o usuário. Ao levar o caso ao Judiciário, a produtora pode exigir o pagamento de até R$ 60 mil. A multa média em processos desse tipo é R$ 48 mil, como informa a página aviso.net.
Tecnologia P2P é usada para calcular multa:
De acordo com o site, o cálculo feito para chegar ao valor da indenização é feito com base não apenas no download de torrent feito pelo próprio usuário, mas também por outros que usaram seu computador como servidor para baixar o arquivo, em conexão P2P.
Como cada licença cobrada pelo estúdio por exibição do filme custa R$ 250, os advogados estipulam que outras 30 pessoas baixam filmes ilegais a partir de um único download. Em uma semana, esse prejuízo chega a R$ 41 mil para os estúdios.
A conexão P2P é comum aos arquivos de torrent, e geralmente habilitada por padrão para que mais usuários se conectem automaticamente ao conteúdo presentes na aplicação executava pelo dispositivo do usuário. Pelo P2P, é criada uma rede de download e upload, aumentando a possibilidade de se obter um arquivo.
Pedro Lana, advogado e pesquisador do GEDAI (Grupo de Estudos em Direito Autoral e Industrial) da UFPR, diz que a presença da conexão P2P não significa que o usuário está ativamente distribuindo o arquivo pirata para outros que se conectam ao seu computador. Segundo ele, a forma como o estúdio de Hollywood — considerado um copyright troll — usa a conexão P2P para aumentar a multa a ser paga na Justiça é forçada e não encontra respaldo legal:
“Os notificantes não sabem quantas pessoas tiveram acesso ao arquivo, quanto por cento do arquivo foi baixado a partir daquela conexão específica e nem se essa função não foi desabilitada. Este é mais um dos argumentos que aparece com o único intuito de criar um clima de medo e fazer parecer que a indenização cabível é muito maior do que ela realmente seria.”
15 mil brasileiros notificados pelo estúdio de Hollywood:
O usuário contou no post do Reddit que recebeu o e-mail no dia 10 de janeiro de 2022, mas ele não está sozinho. No Twitter, outras duas usuárias dizem ter recebido outras notificações da Millennium Media; ambas chegaram no dia 3 do mesmo mês.
O Guerra Advogados Associados confirmou ao Tecnoblog que, entre 2021 e 10 de janeiro de 2022, aproximadamente 15 mil brasileiros receberam e-mails de notificação do estúdio de Hollywood por pirataria.
O autor do post no Reddit nota que a notificação extrajudicial enviada em nome do estúdio de Hollywood continha alguns de seus dados pessoais, como endereço completo, IP, data e hora do download do torrent pirata e mais o provedor de sinal de sua casa — no caso, a NET Virtua.
Diz o e-mail enviado pelo escritório de advocacia:
“Todos os filmes lançados pela Rambo V Productions, Inc. contêm uma funcionalidade de monitoramento de atividades de download e compartilhamento das mesmas. Através desta ferramenta forense, o uso de torrent para realizar o download e o compartilhamento de cópias não licenciadas é imediatamente detectado, sendo possível determinar o endereço de IP da máquina, o provedor de acesso usado, a porta de origem e a data e horário exatos em que tais atividades ocorreram.”
Para obter os dados pessoais de quem baixou torrents, consta no site aviso.net que o estúdio entrou com uma medida contra o provedor de rede para obter informações relacionadas a todos os IPs que infringiram os direitos autorais da Millennium.
O Tecnoblog teve acesso a duas liminares na Justiça, protocoladas por mais de uma empresa que representa os interesses comerciais do estúdio de Hollywood: a Process Management Ltd. As ações — ambas de 2020 — são para “produção antecipada de prova”. Ou seja, quando a parte envolvida alega que não pode esperar para a produção de evidências contra os acusados.
A Claro, proprietária da NET Virtua, é alvo das duas medidas judiciais no TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo). Nos dois casos, os juízes favoreceram a produtora de Hollywood, obrigando a operadora a manter ativos todos os dados relacionados aos IPs que piratearam filmes como Hellboy, Invasão ao Serviço Secreto, Rambo: Até o fim, entre outros.
Os endereços de rede dos usuários que baixaram filmes ilegalmente aparecem em uma planilha de Google Drive, anexada ao processo, que corre em segredo de Justiça.
A operadora também foi obrigada a fornecer à Millennium Media os dados pessoais dos clientes que baixaram os filmes ilegalmente. À Claro, foi exigida a entrega de CPF ou CNPJ, nome completo, endereço físico, e-mail e telefone, “entre outros dados” de quem cometeu a infração aos direitos autorais da Millennium Media.
Especialistas veem “exagero” na obtenção de dados:
Questionado se há um exagero na demanda pelos dados pessoais desses clientes, o Guerra Advogados Associados afirma:
“Os dados fornecidos em cumprimento de ordens judiciais são aqueles absolutamente necessários para a identificação do assinante e para que a titular do direito possa empreender as medidas extrajudiciais (notificações) e, eventualmente, judiciais (ações indenizatórias de natureza civil, por exemplo).”
Mas o IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa ao Consumidor) diz que há excesso na liminar protocolada pelo estúdio, ao que chamou . “O escritório visam obter uma série de informações pessoais excessivas, inclusive perfis em redes sociais. Além disso, todo esse procedimento de obtenção de informações pessoais dos usuários é cercado de possíveis ilegalidades”, disse o instituto em nota à reportagem.
Para o Partido Pirata, que assume instâncias de defesa aos consumidores, alguns desses IPs podem não ter baixado torrents de filmes da Millennium:
“É sempre provável que uma parcela desses alvos sequer tenha cometido alguma infração, e isso é usado para estender a mácula a todas as pessoas da lista, como um viés de confirmação. O sistema fornece muitos falsos positivos, mas ao mesmo tempo, joga para o notificado a peteca de provar sua inocência.”
Um dos pedidos judiciais também teve como alvo outra grande operadora brasileira: a TIM. Em dezembro de 2020, a juíza de Direito Adriana Marilda Negrão determinou que a provedora fornecesse dados pessoais atrelados aos IPs que baixaram filmes ilegalmente.
A advogada Caroline Dinucci, especialista em direito digital, afirma que o procedimento adotado para identificar os donos de IPs na Justiça é legítimo:
“O que acontece: há uma concepção problemática de que a internet é uma terra sem lei. Mas o Marco Civil da Internet impõe obrigações aos provedores. Tudo que nós fazemos deixa um rastro. Temos um endereço de IP e, na hora de tomar providências, ele pode ser exigido através de uma liminar na Justiça. A princípio, vejo isso como algo legítimo.”
Dinucci, sócia da Dinucci-Barreto Advogados, explica que apesar de a liminar ser de 2020, o escritório de advocacia pode enviar e-mails pedindo indenizações, já que estas são extrajudiciais. Contudo, a produtora só pode processar o usuário na Justiça em até 3 anos a partir da entrada de processo contra a Claro e a TIM.
Já Tania Liberman, advogada da área de Tecnologia e Proteção de Dados da Cescon Barrieu, diz que a Millennium Media deve avisar ao usuário que o torrent de seu filme é rastreado por uma ferramenta forense.
O anúncio deve aparecer antes que a pessoa baixe o conteúdo, e precisa conter menção ao crime de pirataria. “A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) determina que toda empresa deixe claro o uso de software e aplicação para captar alguns dados do titular. Se o estúdio avisa isso antes de baixar o torrent, ele está autorizado a usar esses dados”, diz Liberman.
Mas o Guerra Advogados não sabe se o usuário é avisado sobre a ferramenta forense. “Mas certamente há o aviso de que baixar o filme sem autorização é uma violação de direitos autorais”, comentou a firma.
Procuradas, TIM e Claro informaram ao Tecnoblog que não comentam decisões judiciais. Nas duas decisões, as informações dos clientes deveriam ser fornecidas em formato Excel, o que dá uma dimensão dos brasileiros notificados.
Afinal, pagar ou não pagar a multa?
Alguns filmes da Millenium que são objetos das ações antipirataria foram produzidos e lançados há dois anos. Rambo: Até o fim, por exemplo, é de 2019 e está disponível no streaming do Telecine, que logo deve migrar todo seu conteúdo ao Globoplay.
O prejuízo que a Millennium tenta recuperar com as notificações extrajudiciais vem a partir da perda de receita com assinaturas de streaming e outras plataformas que oferecem o filme para alugar ou comprar. Contudo, especialistas veem os e-mails que pedem pagamento pelo download ilegal de filmes como inefetivos no combate à pirataria.
Na avaliação de Pedro Lana, na verdade o principal objetivo dos estúdios é obter dinheiro a partir de uma tática de intimidação.
O pesquisador da UFPR afirma que é necessário sancionar os responsáveis pela criação de ferramentas de compartilhamento ilegal de filmes e séries, que são os maiores violadores de direitos, e não os usuários comuns. As empresas responsáveis por esses avisos extrajudiciais são chamadas de “copyright trolls”, ou trolls de direitos autorais.
O site do Guerra Advogados Associados afirma que as notificações podem ter um caráter educacional, pois o usuário que baixou o torrent pode reconhecer que violou direitos autorais, e não repetir o download sem autorização.
Mas Pedro Lana rebate:
“É preciso deixar claro: o intuito dos trolls de direitos autorais é o lucro. Ponto. Não considero existir um pingo de verdade na alegação de um intuito primariamente pedagógico, como afirmam o site e as notificações. Se fosse assim, seguiriam o modelo utilizado em vários outros países do mundo, em que as pessoas são antes notificadas para cessarem as violações e, caso reincidam, aí sim serão sancionadas financeiramente, escalonando as punições com novas infrações.”
“Eu não imagino que essa tática tenha muito sucesso. Acho que muita gente vai olhar e jogar [o e-mail] no lixo. Podem até parar de baixar filmes, mas não vão pagar as multas”, esclarece Tania Liberman. “Mas é bom deixar claro: a pirataria pode deixar os produtos ainda mais caros, porque as produtoras podem incluir no ingresso o prejuízo com pirataria no ingresso.”
Por outro lado, o Partido Pirata culpa a destribuição desigual de recursos como principal motivo que leva brasileiros a piratearem filmes, séries e músicas:
“A internet trouxe essa ideia de uma infinita integração entre as pessoas, ninguém quer ficar de fora do assunto do momento, e se os meios forem excludentes, as pessoas acabam buscando outras formas. Tornar a cultura acessível e simples para o usuário é a forma mais efetiva de combater a pirataria.”
Aos usuários que receberam o e-mail do Guerra Advogados Associados pedindo pelo pagamento de indenização, o IDEC recomenda cautela.
A pessoa deve ignorar o pedido extrajudicial e não entrar em contato com o número ou endereço eletrônico que aparecem nas mensagens. “Os fundamentos jurídicos e técnicos são dúbios. É importante que o consumidor não se intimide nem siga qualquer instrução destas notificações”, diz o IDEC.
Por fim, especialistas consultados pelo Tecnoblog afirmam que não há fundamento jurídico para que a Millenium Media, por meio do Guerra Advogados, processe os clientes que baixaram torrents de seus filmes. Eles defendem que a ausência de fins lucrativos — o usuário que não ganha dinheiro comercializando o arquivo — isentam a pessoa de culpa.
Em nota, o Guerra Advogados Associados diz que espera que os e-mails exigindo indenização por violação de direitos autorais reduza o número de usuários que continuem baixando torrents.
Texto 5:
O aviso em tom de ameaça chega antes por email e depois pelos Correios. Diz que o destinatário da notificação tem um prazo para pagar um valor ou um processo judicial será iniciado. A infração: violação de direitos autorais pelo download de um filme via internet.
A origem dessas notificações está em ações judiciais nas quais empresas que alegam ser detentoras desses direitos pedem às concessionárias de internet o acesso aos dados de usuários que, segundo elas, estariam violando a lei ao baixar filmes por meio de sites como uTorrent e BitTorrent.
E eles têm conseguido decisões antecipadas (liminares e tutelas de urgência) para acessar nomes, emails, endereços e telefones ligados a milhares de IPs (protocolo de internet, um tipo de endereço que identifica cada dispositivo conectado a uma rede).
De posse dessas informações, escritórios de advocacia disparam notificações extrajudiciais oferecendo acordos com valores entre R$ 200 e R$ 3.000, como compensação pelo que afirmam ser uma infração.
Para entidades como o Idec (Instituto de Defesa do Consumidor) e a Coalizão Direitos na Rede, trata-se de tipo de "pescaria" encabeçada pelo que consideram ser "copyright trolls", que aplicam à defesa dos direitos autorais as mesmas táticas agressivas dos brucutus da internet.
Elas também recomendam que os consumidores não respondam às notificações e não paguem os valores requisitados. O rosto formal desses trolls são os escritórios de advocacia que atuam a favor das produtoras nas ações, e que rejeitam denominação.
"É lamentável, estão tentando confundir essas ações com instituto do copyright troll. Há total direito dos detentores [em cobrar compensação]", afirma o advogado Márcio Gonçalves, do escritório que leva seu nome, responsável por milhares de notificações.
Joélcio Tonera, do escritório Guerra IP, também signatário de outras milhares de notificações e autor de uma ação contra a Telefônica Brasil, diz que apenas representa os interesses de quem detém os direitos sobre as produções.
"O posicionamento valorativo ou moral caberia a quem foi lesado. De qualquer modo, o nosso cliente disponibiliza de forma absolutamente legítima os arquivos de suas obras cinematográficas àqueles que são autorizados. A partir do momento em que há cópias, há uma infração", afirma. "Com todo respeito ao importante trabalho do Idec, mas isso não é uma questão de direito do consumidor."
No processo contra a Telefônica, Tonera representa a Pml Process Management Ltd., empresa com sede em Chipre.
O pedido afirma que a empresa identificou, a partir de tecnologia forense, que certos IPs teriam usado sites de torrents para fazer o download ilegal de filmes. O argumento é o mesmo de outras ações do tipo. A lista de produções que teriam sido baixadas inclui títulos como "Ava", "Rambo: Até o Fim", "Hellboy" e "Dupla Explosiva".
O advogado não informa quantos usuários já tiveram seus dados revelados por decisão judicial —o número é protegido pela Lei Geral de Proteção de Dados, diz ele.
Mesmo nos processos em que não foi o autor, como os contra a Claro, o Guerra IP recebeu autorização para acessar os dados concedidos pela Justiça (o nome jurídico é o substabelecimento).
O processo mais recente inclui 66 mil IPs. Em outro, contra a Claro, 53 mil IPs foram identificados. A Vivo diz desconhecer a ação judicial. A Claro não comenta.
Para Luã Cruz, pesquisador do Programa de Telecomunicações e Direitos Digitais do Idec, não há dúvidas de que as ações judiciais e as notificações extrajudiciais sejam comportamentos trolls.
A solicitação dos dados não é ilegal, afirma, mas os métodos são questionáveis, pois não explicam a usuários ou Judiciário como foi feita a identificação e de que maneira os dados coletados estão sendo tratados.
Pedro Lana, pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e secretário do Instituto Observatório do Direito Autoral (Ioda), diz que as empresas que solicitam os dados não são transparentes quanto aos procedimentos para identificação dos IPs.
Para Lana, que integra a Coalizão Direitos na Rede, há indícios de que essa coleta viole a legislação de proteção de dados. Ele também acha o método compatível com a classificação como troll porque desvirtua a finalidade da lei de direitos autorais, que é o estímulo da criatividade, ao aplicá-la a ameaças de litigância.
O advogado Christian Perrone, do ITS (Instituto Tecnologia e Sociedade), diz que os trolls se aproveitam do medo do usuário de ter uma consequência mais grave ao fato de o download ter sido realizado.
No caso das notificações, ele recomenda buscar descobrir se os direitos são legítimos antes de qualquer resposta. "Mas há sempre uma grande probabilidade de ser só um jeito de receber um dinheiro rápido."
A Folha conversou com duas pessoas notificadas por um desses escritórios. Ambas pediram para não serem identificadas pois decidiram não responder às notificações.
As duas contam que, ao receber o email, acharam que era tentativa de golpe. Dias depois, a notificação chegou pelos Correios. Usuária notificada em março diz ter convicção de que não baixou o filme. O problema, afirma, é que a notificação não traz nenhuma outra informação que permita confirmar a acusação.
O advogado Márcio Gonçalves defende as notificações e afirma que o procedimento pretende conscientizar o usuário sobre o direito autoral. Segundo ele, há acordos que nem envolvem pagamentos.
"É tudo tratado caso a caso, mas quem decide ignorar corre o risco de ser alvo de uma ação individual", afirma. Ele ingressou, por decisão das companhias que representa, com duas ações contra usuários.
Para o Idec, o usuário deve ter em mente que esses pedidos estão baseados em uma situação jurídica nova e que não há possibilidade de enquadramento como crime, ou seja, na esfera penal, pois não houve a intenção de lucrar com o download.
No âmbito cível, o órgão de defesa do consumidor considera que os valores são desproporcionais, gerando enriquecimento ilícito.
"Eles dizem que é para educar os usuários, mas o que a gente tem visto é que, como eles têm dados de muitos usuários, eles fazem uma pescaria com rede. A gente entende que as pessoas podem ignorar essas notificações, porque eles querem lucrar com essa brecha na legislação", diz Cruz, do Idec.
Texto 6:
Durante os últimos meses de 2020, várias pessoas receberam, em suas residências, cartas remetidas pelo escritório de advocacia Kasznar Leonardos, uma das principais firmas na área de propriedade intelectual do país. Essas cartas de três páginas são notificações extrajudiciais distribuídas massivamente, contendo ameaças e propondo um “acordo” de R$ 3.000,00 em razão de supostos e ilegais downloads de filmes, a fim de evitar uma judicialização.
Como isso ocorreu?
A empresa Copyright Management Services, representada pelo escritório de advocacia mencionado, ajuizou um processo judicial de produção antecipada de provas contra a Claro S.A. (processo n. 1021624–84.2020.8.26.0100). Visava nele obter informações pessoais (“todos os dados cadastrais, tais como nome completo, endereços físico e eletrônico, eventuais perfis em redes sociais, telefones, CNPJ ou CPF, entre outros”) relacionadas aos IPs que, ao menos alegadamente, foram obtidos por meio de um sistema eletrônico de controle de pirataria online.
O escopo das informações exigidas é claramente exagerado, requerendo que sejam repassados muito mais dados pessoais (como perfis de redes sociais, beirando o absurdo) do que o necessário para o intuito da autora da ação judicial, o que é em si uma visível e grave irregularidade diante dos princípios do Marco Civil da Internet e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Então, a Claro S.A., representada pelo escritório de advocacia Rosenthal, Guaritá e Facca Advogados em uma grave falha, que entra em conflito direto com o princípio da prevenção da LGPD (mais precisamente em relação aos arts. 46 e 47 da Lei), disponibilizou em um processo judicial de acesso público (sem segredo de justiça) um link direcionando para planilhas hospedadas na plataforma Google Drive, com o detalhamento de pelo menos grande parte das mais de 53 mil identificações solicitadas pelo requerente, quais sejam: nome completo, CPF, endereço e e-mail. Em outras palavras, qualquer pessoa podia ter acesso às planilhas, colocadas em petição acessível por qualquer pessoa credenciada (incluindo qualquer advogado) no sistema eletrônico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Além dos erros já citados, o escritório de advocacia Rosenthal, Guaritá e Facca Advogados, representante da Claro S.A., também adicionou às planilhas dados de usuários relativos a um outro processo judicial, sobre pirataria de software. Inclusive, tal fato foi objeto de advertência dos advogados da Kasznar Leonardos, que representa a Copyright Management Services.
A partir disso, as notificações propondo “acordos” para evitar a judicialização foram distribuídas. Mas, como as informações pessoais foram expostas publicamente, não há sequer como confirmar que elas são verídicas e realmente provenientes da empresa e do escritório de advocacia que são partes na ação judicial, já que outros interessados podem ter tido acesso aos dados e enviado as notificações. E além disso, há relatos de notificados que tentaram entrar em contato com o escritório, mas não obtiveram resposta.
Como os notificantes sabem que quem efetivamente baixou o conteúdo foi realmente a pessoa a quem a notificação foi enviada?
Aqui está um dos pontos chaves que todos e todas devem estar cientes: eles não sabem. Na ação judicial supramencionada, foi exposta uma lista que ligava os IPs com informações pessoais. Mas isso são indicativos não definitivos, diante da possibilidade de usos compartilhados.
Esse tipo de medida de perseguição dos usuários é efetiva?
A resposta é um contundente não. A perseguição massiva aos usuários que baixam conteúdo protegido por direito autoral foi inócua tanto nos Estados Unidos como na Europa, com o cometimento de inúmeros erros e resultados sociais e econômicos desastrosos, tanto para o público quanto para a própria indústria de entretenimento. Essas experiências demonstraram que a melhor solução para combater a pirataria é aprimorar a qualidade dos serviços e produtos legalizados, oferecendo ao consumidor algo que ele se sinta motivado a assinar ou comprar, não pela exclusividade, mas pela comodidade, oferta e preço justo. A indústria investir tempo e dinheiro em perseguição e na criminalização das pessoas que compartilham conteúdo online é o mesmo que agir contra os seus principais clientes, pois o que a grande maioria dos estudos independentes mostram é que aqueles que fazem o uso de recursos “piratas” são, também, os mais interessados em produtos culturais (filmes, músicas, etc.) Com isso, são aqueles que mais gastam dinheiro com estes itens, mas fazem o uso de métodos alternativos para suprir as limitações existentes nos serviços e produtos legais.
Há uma base jurídica para um processo judicial?
O senso comum poderia indicar que, como o download é de um produto disponibilizado irregularmente, isso seria uma infração, principalmente tendo em vista o art. 184 do Código Penal. Mas essa é uma visão literalista e superficial da nossa legislação, inclusive da Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98). Uma abordagem sistemática e teleológica das normas explicita que o alvo da lei e a aplicação efetiva dela pelo Poder Judiciário são justamente os grandes agentes que promovem a pirataria e buscam lucrar com isso, e não os usuários comuns. Embora há muitos anos algumas associações e entidades busquem enquadramentos mais abrangentes para o tipo penal, a jurisprudência nacional e boa parte dos maiores nomes da doutrina especializada do Direito Autoral defendem que a ausência de fins lucrativos (ou de ganhos econômicos) e a inexistência de danos ao titular descaracterizariam a infração penal, posição ainda corroborada pelos princípios que exigem interpretações restritivas de normas criminais. E o foco nesses grandes agentes movidos pelo lucro, por fim, seria particularmente relevante em países como o Brasil, em que o direito a participar da vida cultural e a fruir as artes — consagrado na Declaração Universal de Direitos Humanos — tem seu exercício especialmente dificultado para os usuários comuns, em função das desigualdades sociais, dos altos preços e da escassez de políticas públicas e aparelhos culturais que possibilitem acesso à cultura.
Há, então, pelo menos uma base técnica para um processo?
Esse é um ponto que reforça a aparência de golpe das notificações extrajudiciais enviadas, porque seus conteúdos são marcados por uma qualidade técnica duvidosa. A resposta é, como nas anteriores, negativa. As notificações extrajudiciais apresentam grande fragilidade na descrição técnica da suposta infração cometida e fazem importantes confusões conceituais, como tratar site, tracker e cliente de torrent como se fossem todos a mesma coisa. Ainda por cima, em parte das notificações enviadas, não está indicado qual aplicativo foi usado pelos usuários na realização do suposto download. Mais gravemente, enquanto na ação judicial se afirma que a “ferramenta” utilizada para acompanhamento dos downloads foi a GuardaLey Infringement Detection System, nas notificações se afirma, contraditoriamente, que foi a Bunting Digital Forensics, cujo site não presta qualquer informação sobre a existência ou funcionamento dessa ferramenta. Além disso, não há a mínima garantia de que estes IPs foram obtidos de forma séria e confiável, sem margem para fraudes, adulterações ou equívocos, o que levanta, inclusive, o questionamento se estes registros realmente pertencem a usuários que estavam fazendo o uso de torrent.
Diante de tudo isso, há grandes razões para se acreditar que estamos diante de uma atuação do que se convencionou chamar de “Copyright Trolls”: pessoas ou organizações que realizam ameaças de processo judicial, ou outras atitudes particularmente agressivas, para obter remuneração a partir de questões ligadas à proteção dos direitos autorais. Atuam a despeito de um real embasamento jurídico para sua reivindicação nesses casos, e a notificação se presta a causar terror psicológico pela ameaça de ação judicial que dificilmente resultaria em vitória para quem a ajuizasse.
Como precaução, recomendamos que as pessoas que receberam as notificações extrajudiciais as ignorem, e não entrem em contato com os números ou endereços eletrônicos indicados nelas. Os fundamentos jurídicos e técnicos são dúbios. Por isso, não se intimide, nem siga qualquer instrução destas notificações. Se ainda tiver dúvida, entre em contato com copyright@partidopirata.org.
PS: Em paralelo, foi formado um grupo de advogados e advogadas para prestar assistência jurídica gratuita aos indivíduos que eventualmente forem processados em razão das notificações recebidas. Caso isso ocorra, não hesitem em entrar em contato por meio do e-mail copyrighttrolls@partidopirata.org
“Todos os filmes lançados pela Rambo V Productions, Inc. contêm uma funcionalidade de monitoramento de atividades de download e compartilhamento das mesmas. Através desta ferramenta forense, o uso de torrent para realizar o download e o compartilhamento de cópias não licenciadas é imediatamente detectado, sendo possível determinar o endereço de IP da máquina, o provedor de acesso usado, a porta de origem e a data e horário exatos em que tais atividades ocorreram.”
Para obter os dados pessoais de quem baixou torrents, consta no site aviso.net que o estúdio entrou com uma medida contra o provedor de rede para obter informações relacionadas a todos os IPs que infringiram os direitos autorais da Millennium.
O Tecnoblog teve acesso a duas liminares na Justiça, protocoladas por mais de uma empresa que representa os interesses comerciais do estúdio de Hollywood: a Process Management Ltd. As ações — ambas de 2020 — são para “produção antecipada de prova”. Ou seja, quando a parte envolvida alega que não pode esperar para a produção de evidências contra os acusados.
A Claro, proprietária da NET Virtua, é alvo das duas medidas judiciais no TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo). Nos dois casos, os juízes favoreceram a produtora de Hollywood, obrigando a operadora a manter ativos todos os dados relacionados aos IPs que piratearam filmes como Hellboy, Invasão ao Serviço Secreto, Rambo: Até o fim, entre outros.
Os endereços de rede dos usuários que baixaram filmes ilegalmente aparecem em uma planilha de Google Drive, anexada ao processo, que corre em segredo de Justiça.
A operadora também foi obrigada a fornecer à Millennium Media os dados pessoais dos clientes que baixaram os filmes ilegalmente. À Claro, foi exigida a entrega de CPF ou CNPJ, nome completo, endereço físico, e-mail e telefone, “entre outros dados” de quem cometeu a infração aos direitos autorais da Millennium Media.
Especialistas veem “exagero” na obtenção de dados:
Questionado se há um exagero na demanda pelos dados pessoais desses clientes, o Guerra Advogados Associados afirma:
“Os dados fornecidos em cumprimento de ordens judiciais são aqueles absolutamente necessários para a identificação do assinante e para que a titular do direito possa empreender as medidas extrajudiciais (notificações) e, eventualmente, judiciais (ações indenizatórias de natureza civil, por exemplo).”
Mas o IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa ao Consumidor) diz que há excesso na liminar protocolada pelo estúdio, ao que chamou . “O escritório visam obter uma série de informações pessoais excessivas, inclusive perfis em redes sociais. Além disso, todo esse procedimento de obtenção de informações pessoais dos usuários é cercado de possíveis ilegalidades”, disse o instituto em nota à reportagem.
Para o Partido Pirata, que assume instâncias de defesa aos consumidores, alguns desses IPs podem não ter baixado torrents de filmes da Millennium:
“É sempre provável que uma parcela desses alvos sequer tenha cometido alguma infração, e isso é usado para estender a mácula a todas as pessoas da lista, como um viés de confirmação. O sistema fornece muitos falsos positivos, mas ao mesmo tempo, joga para o notificado a peteca de provar sua inocência.”
Um dos pedidos judiciais também teve como alvo outra grande operadora brasileira: a TIM. Em dezembro de 2020, a juíza de Direito Adriana Marilda Negrão determinou que a provedora fornecesse dados pessoais atrelados aos IPs que baixaram filmes ilegalmente.
A advogada Caroline Dinucci, especialista em direito digital, afirma que o procedimento adotado para identificar os donos de IPs na Justiça é legítimo:
“O que acontece: há uma concepção problemática de que a internet é uma terra sem lei. Mas o Marco Civil da Internet impõe obrigações aos provedores. Tudo que nós fazemos deixa um rastro. Temos um endereço de IP e, na hora de tomar providências, ele pode ser exigido através de uma liminar na Justiça. A princípio, vejo isso como algo legítimo.”
Dinucci, sócia da Dinucci-Barreto Advogados, explica que apesar de a liminar ser de 2020, o escritório de advocacia pode enviar e-mails pedindo indenizações, já que estas são extrajudiciais. Contudo, a produtora só pode processar o usuário na Justiça em até 3 anos a partir da entrada de processo contra a Claro e a TIM.
Já Tania Liberman, advogada da área de Tecnologia e Proteção de Dados da Cescon Barrieu, diz que a Millennium Media deve avisar ao usuário que o torrent de seu filme é rastreado por uma ferramenta forense.
O anúncio deve aparecer antes que a pessoa baixe o conteúdo, e precisa conter menção ao crime de pirataria. “A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) determina que toda empresa deixe claro o uso de software e aplicação para captar alguns dados do titular. Se o estúdio avisa isso antes de baixar o torrent, ele está autorizado a usar esses dados”, diz Liberman.
Mas o Guerra Advogados não sabe se o usuário é avisado sobre a ferramenta forense. “Mas certamente há o aviso de que baixar o filme sem autorização é uma violação de direitos autorais”, comentou a firma.
Procuradas, TIM e Claro informaram ao Tecnoblog que não comentam decisões judiciais. Nas duas decisões, as informações dos clientes deveriam ser fornecidas em formato Excel, o que dá uma dimensão dos brasileiros notificados.
Afinal, pagar ou não pagar a multa?
Alguns filmes da Millenium que são objetos das ações antipirataria foram produzidos e lançados há dois anos. Rambo: Até o fim, por exemplo, é de 2019 e está disponível no streaming do Telecine, que logo deve migrar todo seu conteúdo ao Globoplay.
O prejuízo que a Millennium tenta recuperar com as notificações extrajudiciais vem a partir da perda de receita com assinaturas de streaming e outras plataformas que oferecem o filme para alugar ou comprar. Contudo, especialistas veem os e-mails que pedem pagamento pelo download ilegal de filmes como inefetivos no combate à pirataria.
Na avaliação de Pedro Lana, na verdade o principal objetivo dos estúdios é obter dinheiro a partir de uma tática de intimidação.
O pesquisador da UFPR afirma que é necessário sancionar os responsáveis pela criação de ferramentas de compartilhamento ilegal de filmes e séries, que são os maiores violadores de direitos, e não os usuários comuns. As empresas responsáveis por esses avisos extrajudiciais são chamadas de “copyright trolls”, ou trolls de direitos autorais.
O site do Guerra Advogados Associados afirma que as notificações podem ter um caráter educacional, pois o usuário que baixou o torrent pode reconhecer que violou direitos autorais, e não repetir o download sem autorização.
Mas Pedro Lana rebate:
“É preciso deixar claro: o intuito dos trolls de direitos autorais é o lucro. Ponto. Não considero existir um pingo de verdade na alegação de um intuito primariamente pedagógico, como afirmam o site e as notificações. Se fosse assim, seguiriam o modelo utilizado em vários outros países do mundo, em que as pessoas são antes notificadas para cessarem as violações e, caso reincidam, aí sim serão sancionadas financeiramente, escalonando as punições com novas infrações.”
“Eu não imagino que essa tática tenha muito sucesso. Acho que muita gente vai olhar e jogar [o e-mail] no lixo. Podem até parar de baixar filmes, mas não vão pagar as multas”, esclarece Tania Liberman. “Mas é bom deixar claro: a pirataria pode deixar os produtos ainda mais caros, porque as produtoras podem incluir no ingresso o prejuízo com pirataria no ingresso.”
Por outro lado, o Partido Pirata culpa a destribuição desigual de recursos como principal motivo que leva brasileiros a piratearem filmes, séries e músicas:
“A internet trouxe essa ideia de uma infinita integração entre as pessoas, ninguém quer ficar de fora do assunto do momento, e se os meios forem excludentes, as pessoas acabam buscando outras formas. Tornar a cultura acessível e simples para o usuário é a forma mais efetiva de combater a pirataria.”
Aos usuários que receberam o e-mail do Guerra Advogados Associados pedindo pelo pagamento de indenização, o IDEC recomenda cautela.
A pessoa deve ignorar o pedido extrajudicial e não entrar em contato com o número ou endereço eletrônico que aparecem nas mensagens. “Os fundamentos jurídicos e técnicos são dúbios. É importante que o consumidor não se intimide nem siga qualquer instrução destas notificações”, diz o IDEC.
Por fim, especialistas consultados pelo Tecnoblog afirmam que não há fundamento jurídico para que a Millenium Media, por meio do Guerra Advogados, processe os clientes que baixaram torrents de seus filmes. Eles defendem que a ausência de fins lucrativos — o usuário que não ganha dinheiro comercializando o arquivo — isentam a pessoa de culpa.
Em nota, o Guerra Advogados Associados diz que espera que os e-mails exigindo indenização por violação de direitos autorais reduza o número de usuários que continuem baixando torrents.
Texto 5:
O aviso em tom de ameaça chega antes por email e depois pelos Correios. Diz que o destinatário da notificação tem um prazo para pagar um valor ou um processo judicial será iniciado. A infração: violação de direitos autorais pelo download de um filme via internet.
A origem dessas notificações está em ações judiciais nas quais empresas que alegam ser detentoras desses direitos pedem às concessionárias de internet o acesso aos dados de usuários que, segundo elas, estariam violando a lei ao baixar filmes por meio de sites como uTorrent e BitTorrent.
E eles têm conseguido decisões antecipadas (liminares e tutelas de urgência) para acessar nomes, emails, endereços e telefones ligados a milhares de IPs (protocolo de internet, um tipo de endereço que identifica cada dispositivo conectado a uma rede).
De posse dessas informações, escritórios de advocacia disparam notificações extrajudiciais oferecendo acordos com valores entre R$ 200 e R$ 3.000, como compensação pelo que afirmam ser uma infração.
Para entidades como o Idec (Instituto de Defesa do Consumidor) e a Coalizão Direitos na Rede, trata-se de tipo de "pescaria" encabeçada pelo que consideram ser "copyright trolls", que aplicam à defesa dos direitos autorais as mesmas táticas agressivas dos brucutus da internet.
Elas também recomendam que os consumidores não respondam às notificações e não paguem os valores requisitados. O rosto formal desses trolls são os escritórios de advocacia que atuam a favor das produtoras nas ações, e que rejeitam denominação.
"É lamentável, estão tentando confundir essas ações com instituto do copyright troll. Há total direito dos detentores [em cobrar compensação]", afirma o advogado Márcio Gonçalves, do escritório que leva seu nome, responsável por milhares de notificações.
Joélcio Tonera, do escritório Guerra IP, também signatário de outras milhares de notificações e autor de uma ação contra a Telefônica Brasil, diz que apenas representa os interesses de quem detém os direitos sobre as produções.
"O posicionamento valorativo ou moral caberia a quem foi lesado. De qualquer modo, o nosso cliente disponibiliza de forma absolutamente legítima os arquivos de suas obras cinematográficas àqueles que são autorizados. A partir do momento em que há cópias, há uma infração", afirma. "Com todo respeito ao importante trabalho do Idec, mas isso não é uma questão de direito do consumidor."
No processo contra a Telefônica, Tonera representa a Pml Process Management Ltd., empresa com sede em Chipre.
O pedido afirma que a empresa identificou, a partir de tecnologia forense, que certos IPs teriam usado sites de torrents para fazer o download ilegal de filmes. O argumento é o mesmo de outras ações do tipo. A lista de produções que teriam sido baixadas inclui títulos como "Ava", "Rambo: Até o Fim", "Hellboy" e "Dupla Explosiva".
O advogado não informa quantos usuários já tiveram seus dados revelados por decisão judicial —o número é protegido pela Lei Geral de Proteção de Dados, diz ele.
Mesmo nos processos em que não foi o autor, como os contra a Claro, o Guerra IP recebeu autorização para acessar os dados concedidos pela Justiça (o nome jurídico é o substabelecimento).
O processo mais recente inclui 66 mil IPs. Em outro, contra a Claro, 53 mil IPs foram identificados. A Vivo diz desconhecer a ação judicial. A Claro não comenta.
Para Luã Cruz, pesquisador do Programa de Telecomunicações e Direitos Digitais do Idec, não há dúvidas de que as ações judiciais e as notificações extrajudiciais sejam comportamentos trolls.
A solicitação dos dados não é ilegal, afirma, mas os métodos são questionáveis, pois não explicam a usuários ou Judiciário como foi feita a identificação e de que maneira os dados coletados estão sendo tratados.
Pedro Lana, pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e secretário do Instituto Observatório do Direito Autoral (Ioda), diz que as empresas que solicitam os dados não são transparentes quanto aos procedimentos para identificação dos IPs.
Para Lana, que integra a Coalizão Direitos na Rede, há indícios de que essa coleta viole a legislação de proteção de dados. Ele também acha o método compatível com a classificação como troll porque desvirtua a finalidade da lei de direitos autorais, que é o estímulo da criatividade, ao aplicá-la a ameaças de litigância.
O advogado Christian Perrone, do ITS (Instituto Tecnologia e Sociedade), diz que os trolls se aproveitam do medo do usuário de ter uma consequência mais grave ao fato de o download ter sido realizado.
No caso das notificações, ele recomenda buscar descobrir se os direitos são legítimos antes de qualquer resposta. "Mas há sempre uma grande probabilidade de ser só um jeito de receber um dinheiro rápido."
A Folha conversou com duas pessoas notificadas por um desses escritórios. Ambas pediram para não serem identificadas pois decidiram não responder às notificações.
As duas contam que, ao receber o email, acharam que era tentativa de golpe. Dias depois, a notificação chegou pelos Correios. Usuária notificada em março diz ter convicção de que não baixou o filme. O problema, afirma, é que a notificação não traz nenhuma outra informação que permita confirmar a acusação.
O advogado Márcio Gonçalves defende as notificações e afirma que o procedimento pretende conscientizar o usuário sobre o direito autoral. Segundo ele, há acordos que nem envolvem pagamentos.
"É tudo tratado caso a caso, mas quem decide ignorar corre o risco de ser alvo de uma ação individual", afirma. Ele ingressou, por decisão das companhias que representa, com duas ações contra usuários.
Para o Idec, o usuário deve ter em mente que esses pedidos estão baseados em uma situação jurídica nova e que não há possibilidade de enquadramento como crime, ou seja, na esfera penal, pois não houve a intenção de lucrar com o download.
No âmbito cível, o órgão de defesa do consumidor considera que os valores são desproporcionais, gerando enriquecimento ilícito.
"Eles dizem que é para educar os usuários, mas o que a gente tem visto é que, como eles têm dados de muitos usuários, eles fazem uma pescaria com rede. A gente entende que as pessoas podem ignorar essas notificações, porque eles querem lucrar com essa brecha na legislação", diz Cruz, do Idec.
Texto 6:
Durante os últimos meses de 2020, várias pessoas receberam, em suas residências, cartas remetidas pelo escritório de advocacia Kasznar Leonardos, uma das principais firmas na área de propriedade intelectual do país. Essas cartas de três páginas são notificações extrajudiciais distribuídas massivamente, contendo ameaças e propondo um “acordo” de R$ 3.000,00 em razão de supostos e ilegais downloads de filmes, a fim de evitar uma judicialização.
Como isso ocorreu?
A empresa Copyright Management Services, representada pelo escritório de advocacia mencionado, ajuizou um processo judicial de produção antecipada de provas contra a Claro S.A. (processo n. 1021624–84.2020.8.26.0100). Visava nele obter informações pessoais (“todos os dados cadastrais, tais como nome completo, endereços físico e eletrônico, eventuais perfis em redes sociais, telefones, CNPJ ou CPF, entre outros”) relacionadas aos IPs que, ao menos alegadamente, foram obtidos por meio de um sistema eletrônico de controle de pirataria online.
O escopo das informações exigidas é claramente exagerado, requerendo que sejam repassados muito mais dados pessoais (como perfis de redes sociais, beirando o absurdo) do que o necessário para o intuito da autora da ação judicial, o que é em si uma visível e grave irregularidade diante dos princípios do Marco Civil da Internet e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Então, a Claro S.A., representada pelo escritório de advocacia Rosenthal, Guaritá e Facca Advogados em uma grave falha, que entra em conflito direto com o princípio da prevenção da LGPD (mais precisamente em relação aos arts. 46 e 47 da Lei), disponibilizou em um processo judicial de acesso público (sem segredo de justiça) um link direcionando para planilhas hospedadas na plataforma Google Drive, com o detalhamento de pelo menos grande parte das mais de 53 mil identificações solicitadas pelo requerente, quais sejam: nome completo, CPF, endereço e e-mail. Em outras palavras, qualquer pessoa podia ter acesso às planilhas, colocadas em petição acessível por qualquer pessoa credenciada (incluindo qualquer advogado) no sistema eletrônico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Além dos erros já citados, o escritório de advocacia Rosenthal, Guaritá e Facca Advogados, representante da Claro S.A., também adicionou às planilhas dados de usuários relativos a um outro processo judicial, sobre pirataria de software. Inclusive, tal fato foi objeto de advertência dos advogados da Kasznar Leonardos, que representa a Copyright Management Services.
A partir disso, as notificações propondo “acordos” para evitar a judicialização foram distribuídas. Mas, como as informações pessoais foram expostas publicamente, não há sequer como confirmar que elas são verídicas e realmente provenientes da empresa e do escritório de advocacia que são partes na ação judicial, já que outros interessados podem ter tido acesso aos dados e enviado as notificações. E além disso, há relatos de notificados que tentaram entrar em contato com o escritório, mas não obtiveram resposta.
Como os notificantes sabem que quem efetivamente baixou o conteúdo foi realmente a pessoa a quem a notificação foi enviada?
Aqui está um dos pontos chaves que todos e todas devem estar cientes: eles não sabem. Na ação judicial supramencionada, foi exposta uma lista que ligava os IPs com informações pessoais. Mas isso são indicativos não definitivos, diante da possibilidade de usos compartilhados.
Esse tipo de medida de perseguição dos usuários é efetiva?
A resposta é um contundente não. A perseguição massiva aos usuários que baixam conteúdo protegido por direito autoral foi inócua tanto nos Estados Unidos como na Europa, com o cometimento de inúmeros erros e resultados sociais e econômicos desastrosos, tanto para o público quanto para a própria indústria de entretenimento. Essas experiências demonstraram que a melhor solução para combater a pirataria é aprimorar a qualidade dos serviços e produtos legalizados, oferecendo ao consumidor algo que ele se sinta motivado a assinar ou comprar, não pela exclusividade, mas pela comodidade, oferta e preço justo. A indústria investir tempo e dinheiro em perseguição e na criminalização das pessoas que compartilham conteúdo online é o mesmo que agir contra os seus principais clientes, pois o que a grande maioria dos estudos independentes mostram é que aqueles que fazem o uso de recursos “piratas” são, também, os mais interessados em produtos culturais (filmes, músicas, etc.) Com isso, são aqueles que mais gastam dinheiro com estes itens, mas fazem o uso de métodos alternativos para suprir as limitações existentes nos serviços e produtos legais.
Há uma base jurídica para um processo judicial?
O senso comum poderia indicar que, como o download é de um produto disponibilizado irregularmente, isso seria uma infração, principalmente tendo em vista o art. 184 do Código Penal. Mas essa é uma visão literalista e superficial da nossa legislação, inclusive da Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98). Uma abordagem sistemática e teleológica das normas explicita que o alvo da lei e a aplicação efetiva dela pelo Poder Judiciário são justamente os grandes agentes que promovem a pirataria e buscam lucrar com isso, e não os usuários comuns. Embora há muitos anos algumas associações e entidades busquem enquadramentos mais abrangentes para o tipo penal, a jurisprudência nacional e boa parte dos maiores nomes da doutrina especializada do Direito Autoral defendem que a ausência de fins lucrativos (ou de ganhos econômicos) e a inexistência de danos ao titular descaracterizariam a infração penal, posição ainda corroborada pelos princípios que exigem interpretações restritivas de normas criminais. E o foco nesses grandes agentes movidos pelo lucro, por fim, seria particularmente relevante em países como o Brasil, em que o direito a participar da vida cultural e a fruir as artes — consagrado na Declaração Universal de Direitos Humanos — tem seu exercício especialmente dificultado para os usuários comuns, em função das desigualdades sociais, dos altos preços e da escassez de políticas públicas e aparelhos culturais que possibilitem acesso à cultura.
Há, então, pelo menos uma base técnica para um processo?
Esse é um ponto que reforça a aparência de golpe das notificações extrajudiciais enviadas, porque seus conteúdos são marcados por uma qualidade técnica duvidosa. A resposta é, como nas anteriores, negativa. As notificações extrajudiciais apresentam grande fragilidade na descrição técnica da suposta infração cometida e fazem importantes confusões conceituais, como tratar site, tracker e cliente de torrent como se fossem todos a mesma coisa. Ainda por cima, em parte das notificações enviadas, não está indicado qual aplicativo foi usado pelos usuários na realização do suposto download. Mais gravemente, enquanto na ação judicial se afirma que a “ferramenta” utilizada para acompanhamento dos downloads foi a GuardaLey Infringement Detection System, nas notificações se afirma, contraditoriamente, que foi a Bunting Digital Forensics, cujo site não presta qualquer informação sobre a existência ou funcionamento dessa ferramenta. Além disso, não há a mínima garantia de que estes IPs foram obtidos de forma séria e confiável, sem margem para fraudes, adulterações ou equívocos, o que levanta, inclusive, o questionamento se estes registros realmente pertencem a usuários que estavam fazendo o uso de torrent.
Diante de tudo isso, há grandes razões para se acreditar que estamos diante de uma atuação do que se convencionou chamar de “Copyright Trolls”: pessoas ou organizações que realizam ameaças de processo judicial, ou outras atitudes particularmente agressivas, para obter remuneração a partir de questões ligadas à proteção dos direitos autorais. Atuam a despeito de um real embasamento jurídico para sua reivindicação nesses casos, e a notificação se presta a causar terror psicológico pela ameaça de ação judicial que dificilmente resultaria em vitória para quem a ajuizasse.
Como precaução, recomendamos que as pessoas que receberam as notificações extrajudiciais as ignorem, e não entrem em contato com os números ou endereços eletrônicos indicados nelas. Os fundamentos jurídicos e técnicos são dúbios. Por isso, não se intimide, nem siga qualquer instrução destas notificações. Se ainda tiver dúvida, entre em contato com copyright@partidopirata.org.
PS: Em paralelo, foi formado um grupo de advogados e advogadas para prestar assistência jurídica gratuita aos indivíduos que eventualmente forem processados em razão das notificações recebidas. Caso isso ocorra, não hesitem em entrar em contato por meio do e-mail copyrighttrolls@partidopirata.org

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