Passarola (Passarola) - Henrique Manzo
Museu Paulista São Paulo
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Em agosto de 1709, aos 24 anos, o padre Bartolomeu
Lourenço de Gusmão convocou a Corte portuguesa para conhecer seu mais novo
experimento. O sacerdote era recém-chegado do Brasil, sua terra natal, onde já
era conhecido como inventor. Mas aquela criação era de uma ousadia inédita.
Gusmão queria voar, e conseguiu. Ele criou um objeto capaz de deslizar pela
atmosfera sem apoio nenhum. “Pela primeira vez na história, um aparelho
construído pelo homem venceu a gravidade”, diz Araguaryno Cabrero dos Reis,
brigadeiro reformado da Força Aérea Brasileira (FAB).
Anos antes, ao examinar o comportamento de uma chama, não
se sabe se de uma vela ou fogueira, Gusmão percebeu que o ar quente podia
elevar pequenos objetos. Por falta de documentos históricos, é difícil saber
como tudo realmente ocorreu. Especula-se que a descoberta tenha se dado quando
uma pequena bolha de sabão, ao passar sobre uma vela, foi fortemente jogada
para as alturas. O fenômeno pode ter ocorrido ainda com pedaços de papel que,
queimados, transformaram-se em fuligem e ascenderam. Foi isso que inspirou o
padre a projetar o primeiro aeróstato, um aparelho parecido com o nosso balão
de São João.
O anúncio sobre a tal máquina de voar inquietou a
sociedade lisboeta no verão de 1709. Em 3 de agosto, Gusmão mostrou à família
real, fidalgos e autoridades eclesiásticas do que era capaz a sua engenhoca.
Durante a primeira tentativa, os ilustres convidados esperavam impacientes na
sala de audiências do Palácio, quando veio a frustração. Vítima de suas
próprias chamas, o pequeno balão de papel cheio de ar quente foi queimado antes
de alçar voo. O segundo ensaio teria ocorrido dois dias depois. Ansiosa, a
platéia da ocasião teve mais sorte: o globo de menos de meio metro de
comprimento subiu pouco mais de quatro metros. Alguns criados do Palácio,
preocupados com a possibilidade de o invento incendiar as cortinas, lançaram-se
contra o balão para que ele não alcançasse o teto.
O mérito de Gusmão foi reconhecido somente na terceira
tentativa. Dessa vez, no pátio do Palácio, perante o rei de Portugal, Dom João
V, e a rainha, dona Maria Anad, o aeróstato ganhou os ares. Ergueu-se
lentamente, indo cair, quando esgotada sua chama, no terreiro da casa real. A
inédita máquina mais leve do que o ar impressionou o público, mas não cumpriu
sequer metade das façanhas que Gusmão prometera a Dom João V. Em seus pedidos
de patente, ele anunciava feitos fantásticos. Dizia que sua invenção
facilitaria a descoberta de novas terras, fazendo “da nação portuguesa a glória
deste descobrimento”. Afirmava tratar-se “de um instrumento para se andar pelo
ar, da mesma sorte que pela terra e pelo mar, e com muita brevidade, fazendo-se
muitas vezes duzentas e mais léguas de caminho por dia.” Azar de Gusmão. “A
Corte não estava preocupada com a ciência. Eles queriam era ganhar dinheiro com
ouro e ter uma vida suntuosa”, diz Henrique Lins de Barros, pesquisador da
história da aviação e autor do livro Santos
Dumont: o Homem Voa!
Embora não tenha surpreendido os portugueses, o
aeróstato aguçou o imaginário do restante da Europa. A notícia que se espalhou
rapidamente foi de que um padre havia voado nos ares de Lisboa. A máquina
ganhou proporções mitológicas e ficou conhecida, a partir daí, como
Passarola.
O nome se deve a um desenho apócrifo e meio
ridículo que surgiu na época, ainda hoje relacionado (incorretamente) à criação
de Gusmão. A imagem representava o aeróstato em forma de um pássaro, com uma
cabeça de águia e cercado por instrumentos científicos. A ilustração trazia
ainda o próprio Gusmão a bordo, como se ele tivesse voado dentro de seu
engenho. Suspeita-se que o próprio “padre voador” (que na realidade nunca voou)
seria o autor do desenho, junto com seu discípulo e amigo conde de Penaguião.
Uma brincadeira de rapazes, com a qual eles pretendiam despistar possíveis
interessados em copiar o experimento de Gusmão.
Prova disso é que o desenho da Passarola não
mostrava a fonte térmica responsável pela subida do balão, característica
imprescindível para que o invento funcionasse. “Ele não dá a chave do problema,
que é a fonte de calor, e ainda se coloca dentro do invento. É possível que
tenha feito isso para esconder os segredos de sua descoberta”, afirma Lins de
Barros. Em função da imagem fantasiosa, diversos historiadores europeus e
norte-americanos situaram Gusmão como um dos muitos precursores da aeronáutica
cujos trabalhos não possuíam nenhuma base científica. Depois das especulações
desastrosas, ele abandonou completamente seu projeto.
Bartolomeu Gusmão tem uma trajetória de mistérios sucessivos. Nascido na vila
paulista de Santos, em 1685, foi batizado com o nome de Bartolomeu Lourenço
Santos, mas sempre preferiu ser chamado de Gusmão. Ainda criança, mudou-se para
a Capitania da Bahia para continuar seus estudos no Seminário de Belém. Na
época, Gusmão já era conhecido pela inteligência e pela memória espantosa.
Construiu uma bomba elevatória para transportar água do rio Paraguaçu até o
colégio dos padres, que ficava a 100 metros do nível do mar. O abastecimento,
até então, exigia muito esforço e tempo dos seminaristas. Esse foi seu primeiro
invento, que fez de Gusmão o primeiro brasileiro a conseguir uma patente.
Entre 1708 e 1709, ele deixou o Brasil rumo a
Portugal. Na metrópole, depois de projetar o aeróstato, dedicou-se a outros
inventos, nenhum com a repercussão do balão. Com o passar do tempo, ele também
ficou conhecido por seus dotes oratórios – tornou-se membro da Academia Real de
História e deixou vários sermões, principalmente o da Festa do Corpo de Deus,
datado de 1721.
Na década de 1720, apesar dos privilégios que tinha
junto à Corte, não conseguiu se ver livre dos problemas trazidos pela Santa
Inquisição. Segundo especulações, ele teria sido perseguido por se converter ao
judaísmo, ou por desafiar a natureza e os desígnios de Deus com seu balão
voador.
No entanto, o biógrafo Benedito Calixto, afirma que
o processo movido pela Igreja Católica Romana contra o inventor não teve
relação com suas exposições aerostáticas. A Inquisição não se preocupava com
descobertas científicas. O escritor Affonso d’Escragnolle Taunay, pesquisador
da vida do padre, endossou essa tese. O problema foi outro: Gusmão teria se
apaixonado por uma freira, conhecida como Trigueirinha, com quem o rei Dom João
V possivelmente mantinha relações amorosas. “A Corte portuguesa era uma
bandalheira geral. As intrigas feitas pela amante do padre o fizeram ir para a
Holanda”, diz o brigadeiro Araguaryno Cabrero dos Reis.
A partir daí, pouco se
sabe sobre o paradeiro de Gusmão. Ele fugiu da Inquisição durante alguns anos e
morreu, com 39 anos, de tuberculose, em 19 de novembro de 1724, em Toledo,
Espanha.
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