domingo, 27 de outubro de 2019

Estátua Grupo de Laocoonte (Groupe du Laocoon) - Alexis François Girard





Estátua Grupo de Laocoonte (Groupe du Laocoon) - Alexis François Girard
Museu Dom João VI, Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, Brasil
Gravura - 62x39




Num período belicoso, em que as diversas potências da Itália brigavam continuamente entre si e com exércitos do exterior, o Papa Júlio II afirmara-se como um dos líderes europeus proeminentes. A capital italiana sofrera prolongados ataques e destruições ao longo de séculos, com seu povo sofrendo as agruras da miséria, enquanto uma elite ligada aos poderes, tanto o papal, quanto o secular, levava uma existência cercada de riquezas, de obras de arte e do conforto que era possível na época. Por diversas razões, os vestígios do esplendor do Império Romano tinham sido abandonados durante anos de barbárie e de sectarismo religioso, mas o movimento renascentista identificava-se com essas glórias passadas, e a classe favorecida almejava reviver os antigos faustos.
Júlio II, eleito papa em 1503, antes conhecido como o cardeal Giuliano della Rovere, era um astuto estrategista político e um dos responsáveis pelo ocaso do poder dos Bórgia. Nutria grande apreço pelo mando e, como seus contemporâneos poderosos, um interesse genuíno e profundo pela posse de obras de arte.
Laocoonte e seus filhos, Antífantes e Timbreu, foi encontrado, por acaso, nessa época.
Era o 14 de janeiro de 1506, e dificilmente se poderia imaginar que duas décadas depois toda a Roma seria saqueada e incendiada. Naquele dia, um dos arquitetos preferidos de Júlio II, Giuliano de Sangallo, almoçava com o artista e gênio Michelangelo Buonarroti, este conhecido pelo seu temperamento difícil. Giuliano, que provinha de uma família de escultores, era o típico artista bem sucedido, enriquecido pela proximidade com o poder.
Um dos homens mais ricos e influentes da Itália, Lorenzo de Medici, tinha Sangallo em grande conta, confiando-lhe trabalhos de responsabilidade. Além disso, este gozara de prestígio junto ao anterior papa Alexandre VII, que lhe confiara missões importantes em Roma, como na Basílica de Santa Maria Maior e obras na Basílica de São Pedro. Giuliano era, digamos, o homem certo, quando se tratava de achar comprador para uma obra artística de valor extraordinário. Michelangelo, então com 30 anos, estava em pleno fulgor de sua criatividade. Sua cultura artística em geral, e o conhecimento das artes clássicas, grega e romana, lhe conferiam um status de connoisseur. Qual não foi a surpresa, quando naquele momento foram contatados por um romano, Felice de Fredi, que afirmava ter descoberto, enterrado em seus vinhedos, um grupo escultórico de mármore, aparentemente uma obra prima grega. Não era uma notícia rara naqueles tempos de pesquisas arqueológicas desenfreadas, já que a arte clássica era sumamente apreciada pelos ricos e poderosos. Mas também não seria uma novidade corriqueira, pois não se trataria de uma simples estátua, mas de uma verdadeira relíquia.
Giuliano de Sangallo e Michelangelo Buonarroti dirigiram-se alvoroçadamente para os terrenos de Fredi, situados onde antes tinham existido as termas do Imperador Tito (Titus Flavius Vespasianus Augustus, nascido em Roma no ano 39, filho mais velho e herdeiro do Imperador Vespasiano). O local ficava nas antigas Termas de Trajano, no sítio da morada do Imperador Nero, nas proximidades do Coliseu. O que viram, na verdade, foram seis pedaços de mármore esculpido, mas a qualidade do trabalho os deixou maravilhados. Logo perceberam, pelas figuras, que se tratava de uma célebre obra, havia muito desaparecida, mas que era mencionada pela literatura clássica.
Deve salientar-se que o jovem Michelangelo ficou tão fascinado pela obra que refletiria, no futuro, em seus próprios trabalhos, a influência monumental do gosto helenístico do Laocoonte.
O poderoso Júlio II logrou comprar imediatamente a escultura, pela qual ofereceu 4.140 ducados, e com promessa de manter em destaque a referência ao responsável pela sua localização, Felice de Fredi. Além disso, este teve garantida uma soma vitalícia de 600 ducados por ano e, ao falecer, em seu túmulo foi mencionado como o descobridor da obra prima.
Durante muitos anos foi ponto pacífico, entre os historiadores da arte, que se tratava de uma peça grega original, do período helenístico. Porém, verificou-se depois que o mármore que sustenta o grupo é italiano - e não grego – e datado do século I ou II DC. Esta e outras discrepâncias levaram os investigadores a concluir que é uma cópia de obra helenística, e desmente a autoria dos três artistas de Rhodes. Na verdade, após estudos exaustivos, chegou-se à conclusão que se trata de uma versão romana, realizada a partir de uma escultura em bronze, esta feita cerca de 140 AC. Continuamos, porém, sem saber detalhes importantes e ignorando data exata da peça original.
O papa ordenou que fosse colocada na Sala do Octógono, no interior do Palácio Belvedere, situado no Vaticano. Anos depois, em 1515, François 1º, rei da França, manifestou, inutilmente, desejo de adquiri-la, renovando seu pedido em 1520, desta vez contentando-se com uma cópia em bronze. O papa Leão X encomendou uma réplica de mármore ao artista florentino Baccio Bandinelli, com a intenção de envia-la ao rei francês, mas acabou também não mandando a cópia (esta encontra-se atualmente na Galleria degli Uffizi, em Florença).
Quando foi achada a obra, havia partes danificadas e faltava-lhe o braço do Laocoonte. Entre artistas e mecenas surgiu então uma discussão acalorada, sobre a orientação para o restauro da peça. Na opinião de Michelangelo, o braço do Laocoonte deveria ficar dobrado, mas outros sugeriam posição diferente, mais dramática e imponente, querendo o membro estendido. Após consulta a um pequeno júri, nomeado pelo papa Júlio II e presidido por Rafael Sanzio, prevaleceu a orientação contrária a Michelangelo. Quanto às obras de restauro, foram realizadas por um discípulo deste artista, de nome Montorsi, que recuperou os danos e colocou um braço em diagonal na figura.
Em 1905, um arqueólogo, Ludwig Pollak, encontrou em um antiquário da Itália o braço perdido da estátua, na posição de dobrado, que acabou sendo incorporado à obra quando foi nela realizada mais uma restauração, entre 1957-1960. Estava realizado o desejo de Michelangelo.
Em 1779, o imperador francês Napoleão Bonaparte conquistou a Itália e enviou o Laocconte para o Museu do Louvre, em Paris, como espólio de guerra. Com a queda de Napoleão, em 1815, os ingleses tomaram a iniciativa de devolver a escultura ao Vaticano.
Porventura a referência mais antiga ao grupo de mármore foi a do nobre, historiador e cientista romano Plinio, o Velho (nascido em Roma em 23 e morto em 79 em Pompeia, durante a erupção do Vesúvio), que escreveu:
“... como no Laocoonte, que está no palácio do imperador Tito, uma obra de arte que deve ser preferida acima de todas...(da autoria) de (três) grandes artistas de Rodes: Hagesander , Polydorus e Athenodorus.”
Outra referência histórica, com a descrição apaixonada da monumental escultura, aparece na Eneida, Canto II, do poeta romano Virgílio (70 a 19 AC), versos 450 a 494, quando Enéias e Acates se surpreendem ao encontrar obras de arte que retratam os horrores das guerras, aqui na tradução de Carlos Alberto Nunes:
“Diante de tal espetáculo fugimos, de medo; os dois monstros/ por próprio impulso a Laocoonte se atiram. Primeiro, os corpinhos/ dos dois meninos enredam no abraço das rodas gigantes/ e os ternos membros retalham com suas dentadas sinistras./ Logo, a ele investem, no ponto em que, armado de frechas, corria/ no auxílio de ambos; nas dobras enormes o apertam; e havendo/por duas vezes o corpo cingido, o pescoço outras duas,/ muito por cima as cabeças lhes sobram, os colos altivos./ Tenta Laocoonte os fatídicos nós desmanchar, sem proveito,/ sangue a escorrer e veneno anegrado das vendas da fronte,/ ao mesmo tempo que aos astros atira clamores horrendos,/tal como o touro, do altar a fugir, o cutelo sacode/ que o sacerdote imperito na dura cerviz assestara.”
O grupo mostra um adulto e dois jovens, enroscados por duas serpentes assustadoras, como na descrição da Eneida de Virgílio. Remete a um episódio da Guerra de Troia, que consta da Ilíada, de Homero. Laocoonte, troiano, era um sacerdote do deus Netuno e tratava de alertar seus patrícios contra a armadilha do enorme cavalo de madeira, onde estavam escondidos soldados gregos, numa artimanha para entrar na cidade fortificada. Alguns deuses, adeptos da causa grega, trataram de acabar com a denúncia de Laocoonte, fazendo vir do mar as serpentes.
A expressão do sacerdote, na cena trágica e desesperada, não aparece como aterrorizada, porque os artistas gregos clássicos cultivavam o comedimento emocional. Evidentemente, dominavam como ninguém a técnica da escultura do mármore, mas a arte não se destinava a expressar a dor de forma naturalista, mas heroica.
Como num flash, a cena mostra o sacerdote e seus filhos aterrorizados, sentindo a proximidade da morte. Olhos abertos, músculos distendidos e corpos retorcidos traduzem o esforço e desespero dos figurantes para se libertar do abraço letal das serpentes. As cabeleiras cacheadas e a perfeição anatômica nos remetem para a excelência da arte helenística.

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