Artigo
Ely Luiz Scalabrin nasceu em 1933. Desde criança ajudava
seu pai, Isidoro Scalabrin, na ferraria localizada próxima aos trilhos de trem
da Avenida Rio Branco. Após os 18 anos, trabalhou em estaleiros em Angra dos
Reis como soldador de cascos de navios. Na década de 60 juntou todas suas
economias para virar “empresário”, sendo o pioneiro na cidade de Caxias do Sul
no ramo de autopeças. O negócio foi crescendo e uma das sedes da empresa ficava
na Rua Dr. Montaury, onde hoje existe o prédio da Justiça Federal. Depois
ocupou uma área de 10.000 m² no Bairro Pio X. Por fim, passou para o local que
estava até hoje, no Bairro Pio X.
A Ferro-velho Scalabrin, empresa aberta há mais de 50
anos, enfrentou e sobreviveu a planos econômicos, crises financeiras, crise do
combustível, onde várias pessoas se desfizeram de seus veículos V8 e vários
“gastões”, devido ao seu preço. Aliado a isso, a modernização da frota
veicular, onde ter um carro “velho” era feio, lá estava Seu Scalabrin,
comprando tudo, mas apenas carros documentados e com procedência. Além disso,
ia a leilões do Exército e arrematava vários veículos vendidos pelo governo;
também comprou veículos de prefeituras, do DAER, de leilões judiciais, que na
época podiam vender os carros recolhidos aos guinchos, entre outros. Isso tudo
sem nunca ser alvo de processo criminal, investigação ou qualquer tipo de
crime. Nada entrava na empresa sem a devida procedência e documentação que
comprovava que o veículo era lícito e regular.
“Adotar tais técnicas seria o grande diferencial para
manutenção do negócio, visto que muitas empresas, infelizmente, adotavam a
prática de compra de veículos roubados, e a grande esperança de meu pai era
que, um dia, essas fossem pegas pelos órgãos competentes e fechadas. Certamente
quem trabalhava dentro da lei teria a possibilidade de se manter”, fala Ely
Scalabrin Júnior, filho do empresário.
Entretanto, as pessoas questionavam Seu Scalabrin com
relação à compra de carros antigos e suas peças, mas ele tinha suas convicções
e sempre fora um homem futurista. “O estoque só aumentava. Ele comprava 10
carros por dia de pessoas físicas (sempre com documento e recibos do
proprietário), e chegou a comprar 500 carros de uma única vez de leilões
judiciais dos guinchos Vanin, Dambroz e Kabika. Ia ainda a quase todos os
leilões do Exército em Caxias do Sul, Santa Maria, Santiago e outros lugares,
comprando Jeep, caminhões Ford, F-75 e todos os veículos militares que
conseguia. Também visitava as prefeituras e arrematava máquinas, carros e tudo
que considerava como oportunidade de negócio. Comprar de órgãos do governo era
garantia de que os bens eram lícitos”, fala o filho.
Seu Scalabrin tinha como sonho construir um museu.
Recolhia ferros de passar roupa antigos, geladeiras, rodas de carroças e tudo
que hoje chamamos de antiguidades, coisas que as pessoas jogavam fora e
substituíam por algo moderno ou da atualidade. Vários anos se passaram, e Seu Scalabrin
passava suas virtudes aos filhos, como a honestidade do seu negócio e tudo que
aprendeu durante esse tempo. Seguia forte no negócio, sem nunca ter se
envolvido em qualquer tipo de crime que o ramo poderia reservar.
O mercado de veículos foi mudando e as pessoas também, e
uma “onda” se iniciou. Não eram mais carros velhos e sucatas, eram carros
antigos, de coleção e raros. Veio a onda dos veículos 4×4 e trilha, a onda dos
“gaioleiros”, dos colecionadores de carros antigos, dos clubes do Maverick, do
Fusca, VW, da GM, dos hot rod, dos V8, do Chevette, do Opala; cada um tem uma
paixão, um carro, uma história. Quem não ia com o pai para a escola de Fusca?
Quem não ia para a chácara com o vô de Rural? Quem não ia pescar de Veraneio?
Quem não carregava frutas na Kombi? E aquele empresário que iniciou seu negócio
com o FNM ou caminhão Chevrolet? Quem não deu risada com a porta estranha do
DKW? E o pai, que tinha um Ford 51 quando conheceu a mãe? Ou ainda quem não era
apaixonado pelos Galaxie presidenciais ou Simca? Se pararmos para pensar, cada
um vai ter uma história envolvendo carros na qual se identifica.
O negócio de venda de peças passou a ser venda de peças
para carros antigos e de coleção. Só alguém “louco” como Seu Scalabrin poderia
ter um negócio assim. Um acervo dessa magnitude só poderia existir para uma
pessoa que dedicou sua vida a comprar e comprar. Mais que isso, a “apostar” num
mercado que não era conhecido, nem percebido.
Ely Scalabrin faleceu em 2004 e, além de todas suas
virtudes, deixou ao seu filho a herança desse negócio, e Ely Scalabrin Júnior
tinha decidido que levaria adiante o negócio do pai. “Foram anos de dedicação
para que eu simplesmente ‘torrasse tudo’. Tinha gratidão envolvida, respeito e
história! Este ferro-velho não era só meu ou do sócio Marino, que estava com
meu pai desde os 14 anos, este ferro-velho era da comunidade, que o manteve
aberto até 2019, nossos amigos e clientes. Este ferro-velho era um patrimônio
do Brasil, e por que não mundial?”, diz Scalabrin Júnior.
Nós da Revista Classic Show sempre nos referimos a ele
como o “Santuário do Carro Antigo”. “Parecia apenas um negócio, mas não era.
Era uma fornecedora de peças para todos aqueles que tinham interesse de manter
a história do carro antigo viva. Era uma “terapia” aos apaixonados que pediam
para simplesmente caminhar lá dentro para relembrar o passado, passar o tempo
com o antigo. No mundo das criptomoedas, das startups, do iPhone, Facebook, do
virtual, ainda tinha e tem gente com saudades do passado. E lá, vendo todas
aquelas peças de carros antigos, eles se transportavam a suas épocas”, fala
Scalabrin.
A empresa passou por mais uns anos de crises, trocas de
governo, mas se mantinha viva. Fazia de tudo para se adequar às leis, que cada
vez eram mais rígidas e até sem fundamento para empresas que trabalhavam com
carros antigos. “Depois de passarmos por tudo isso, sobreviver por mais de 50
anos, aparecem três servidores públicos e acabam com toda essa história!
Ignoram a explicação de que o ferro-velho era o CDV00004, fazem uma
superinspeção à procura de veículos roubados e peças ilícitas, mas nada
encontram. Parece raro, não é? 50 anos trabalhando com peças, comprando carros
e nada é roubado? Sem processos criminais? Todas as certidões negativas! Mesmos
sócios no contrato social. Enfim, como não canso de dizer: ‘Nem um parafuso
roubado’, e aí alegam risco ambiental. Ok!”, fala Scalabrin, revoltado com a
situação.
Ely Scalabrin Júnior questionou sobre o relatório de
risco ambiental aos servidores. “Eu perguntei: ‘Senhor, pode dizer e entregar
um relatório do órgão ambiental que detectou esse risco? Nos detalhar quais são
esses riscos?’, mas nada! Nem a isso temos acesso, e a resposta foi: ‘Iremos
receber esse relatório nos próximos dias’”, disse ele. “Questionei ainda: ‘E mesmo
assim os senhores irão carregar tudo e colocar na sucata? Senhor, não pode
lacrar o depósito e preservar essas peças de carros antigos para apresentarmos
uma defesa? Se tudo for para sucata como pretendem, nunca mais esse erro será
reparado, e o que for prensado e derretido nunca mais retornará!’”, suplicou
ele.
Scalabrin, em suas últimas tentativas, tentou utilizar do
bom senso de todos e permitir que apenas o que estivesse exposto ao tempo fosse
recolhido. “Já que o senhor alega risco ambiental, poderia recolher apenas o
material que está no tempo? Ou senhor vai recolher também o que está dentro do
pavilhão coberto, com piso, em prateleiras, e algumas peças dentro de tambores?
Quem sabe senhor lacra este pavilhão e aguardamos uma manifestação da Justiça,
uma oportunidade de defesa por nossa parte?”, tentou ele.
“Todas tentativas foram feitas, mas prevaleceu o poder
dessas pessoas, o abuso de autoridade do Estado, a falta de bom senso e vontade
de preservar a História. Ficou a ‘sede’, a determinação de recolher tudo o mais
rápido possível e entregar à siderúrgica, que lá estava com 10 caminhões, 20
funcionários, ônibus, garra e todo aparato de quem precisa desta
matéria-prima”, fala ele desolado.
Scalabrin ainda questiona o governo gaúcho pela ação e a
atual situação do Rio Grande do Sul. “Um estado ‘quebrado’, que não faz
estrada, não dá escola, saúde, segurança, que alega que não tem dinheiro para
repor efetivo policial, que não tapa os buracos da RS-122, que não investe em
presídios, que paga parcelado policiais, professores e todos outros servidores,
chega nesse dia para uma superoperação de combate ao crime e roubo de veículos.
Chega com servidores do IGP, Polícia Civil, Brigada Militar, várias viaturas,
servidores do Detran, enfim, um belo aparato supereficiente! Eficiência que o
estado fala em todas as suas entrevistas que não consegue ter por falta de
dinheiro. Espero que o dinheiro da sucata das minhas peças não caia na conta
deste estado! Será que seria possível ainda a manutenção da injustiça, chegando
ao ponto do estado também ficar com este dinheiro? Depois de terem vendido
carros no leilão para mim e recebido, e depois ter recebido dinheiro dos
impostos relativos à minha atividade comercial, retirar todas essas peças com a
devida procedência e ainda vendê-las como sucata pelo preço que eles
determinam, e no fim de tudo isso ficar com esse valor? A quem diga que sim,
isso irá acontecer”, disse o empresário.
Scalabrin relatou ainda que o próprio sistema do Detran
impedia que ele realizasse o cadastro de todas as suas peças, como exigia a
lei. “Um dos idealizadores, de dentro do Detran, desses procedimentos disse que
nada poderia fazer! Apenas pedia para catalogarmos milhares de produtos no
sistema. Dizíamos a ele que não tínhamos a mínima condição humana para isso. E
o pior: o sistema não aceitava a inclusão de itens com carros de placa amarela,
dos carros daquela época. Mas ele insistia que sim, que era possível
catalogarmos tudo”, relata ele. “Depois, quando se iniciou o carregamento de
todas as nossas peças, pedimos ao mesmo para catalogar todos os itens para
podermos apresentar à Justiça o que foi carregado, mas o mesmo nega. Ele disse
que catalogar tudo aquilo era humanamente impossível! Que ironia do destino,
não é?”, fala ele indignado.
“Agradeço todos aos amigos, clientes e comunidade, que
organizaram uma manifestação na noite de quarta-feira em protesto ao ocorrido,
fazendo uma carreata. Aos que estiveram lá no local defendendo nossa empresa e
confirmando a idoneidade que sempre tivemos. Agradeço à Revista Classic Show
pela matéria de apoio e que foi determinante para a mobilização de um movimento
de apoio e defesa dos interesses de admiradores de carros antigos. À imprensa
toda, que deixou claro que nossa empresa não teve nada de ilícito, fazendo com
que nossos danos morais fossem, no mínimo, reduzidos devido à vergonha a que
fomos expostos. Agradeço aos clubes de carros antigos que se manifestaram
através de nota, sendo representados pela Federação Brasileira de Veículos
Antigos. Também aos que enviaram mensagens nas redes sociais de apoio, aos
representantes da classe política que se disponibilizaram a buscar a verdade
dos fatos e levar nossas defesas a quem tinha poder de decisão! Enfim, a todos
os apaixonados por carros, pela história e que de uma forma ou outra tentaram
ajudar a reverter esta injustiça e que sabemos que não irão se calar ainda.
Além de tudo, teremos que brigar por um reparo indenizatório por parte dos
responsáveis e torcer para que a justiça seja feita. Porém, tudo que foi ‘derretido’
e não voltará mais”, finaliza o empresário.
Fonte: https://www.classicshow.com.br/site/ferro-velho-scalabrin-2/Nota do blog: A lei brasileira faculta a qualquer ladrão, assassino, corrupto, fraudador, etc, inúmeras garantias para evitar de todos os meios, a merecida punição. Ao mesmo tempo, a lei brasileira permite absurdos como esse. Não é um país sério. E nunca será...
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