segunda-feira, 9 de setembro de 2019

A Realidade do Tombamento de Imóveis no Brasil para Fins de Preservação da História, Memória e Cultura, Brasil


A Realidade do Tombamento de Imóveis no Brasil para Fins de Preservação da História, Memória e Cultura, Brasil
Artigo


Hoje gostaria de falar sobre um tema sempre muito discutido: tombamento. Trabalho com preservação e sempre vejo muita coisa sendo dita a respeito que simplesmente não bate com a realidade. Imagine que um dia você acorde e não se lembre de nada. Não lembre quem é, o que faz, nem de onde veio. Não sabe sequer o que deve fazer depois de levantar da cama. Instintivamente, você procuraria ao seu redor, nos objetos, algo que o fizesse recordar de parte de suas memórias. Os objetos, assim como a história escrita em livros ou registrada em fotografias, são instrumentos para que nós possamos entender quem somos. Preservação é isso: conservar determinado objeto (material e também imaterial) para seu uso como instrumento de promoção da história e da cultura. Não vou me alongar aqui na história da preservação em si, mas há muitos milhares de anos já se percebia que determinados objetos possuíam um valor destacável por diferentes motivos, sejam eles simbólicos, históricos ou artísticos, e não poderiam ser simplesmente descartados. Os primeiros museus surgiram nos tempos da Grécia Antiga, ao longo dos séculos seguintes adquirindo as características que tem hoje. A preservação de edifícios ainda veio a demorar, por uma simples razão: salvo em caso de guerras, raramente havia a demolição de um edifício numa cidade qualquer. Os novos edifícios eram construídos nas partes novas das cidades, mantendo-se ao centro os mais antigos, que continuavam a ser usados normalmente, já que não havia mudança abrupta nos usos e no dia a dia. É como cortar o tronco de uma árvore: os anéis menores, ao centro, são os mais antigos, e quanto mais se afasta do centro, mais novos eles são. Com o Renascimento, a noção moderna de urbanismo tomou corpo: projetos de praças para arejar os centros das cidades demoliram por vezes quadras inteiras. Mas foi a partir da Revolução Industrial, por razões óbvias, que a substituição de edifícios antigos por novos tomou uma escala gigantesca no mundo inteiro. Londres, para quem não sabe, é uma cidade que remete aos tempos romanos, porém, da velha Londinium não restou sequer uma construção, sendo todo o núcleo da cidadela original demolido para dar lugar ao centro financeiro no século XIX. E foi justamente observando que esse tipo de demolição causava severos danos na conservação da história e da cultura que os britânicos criaram a preservação como conhecemos hoje. Para vocês terem uma ideia, enquanto no Brasil se construía a primeira ferrovia, no Reino Unido se criava o primeiro museu ferroviário (e a diferença da primeira ferrovia deles para a nossa foi de pouco mais que 30 anos!). Um dos instrumentos utilizados à época para assegurar que construções importantes não fossem abaixo foi protegê-las mediante a lei, surgindo assim o tombamento, que nada mais é que dar um status reconhecendo a importância de determinada construção. No Brasil, trabalhamos basicamente com 3 tipos de tombamento: - Nível 1 - total; - Nível 2 - parcial (apenas externo); - Nível 3 - ambiental (apenas fachadas e/ou gabarito). No Brasil, por uma série de razões culturais, criou-se uma mentalidade de se desprender do passado, sempre reescrevendo a história, imaginando-se um ideal de "construção de uma nova nação". Só que esqueceram que o elemento mais importante de uma nação é sua cultura. Assim, demolições foram sempre frequentes no Brasil. Vejam o centro de São Paulo: não sobrou nenhuma construção civil da era colonial, sendo todas demolidas na virada para o século XX, e não muito depois boa parte das novas construções foram também demolidas para dar lugar a arranha-céus ainda mais modernos. Apesar das graves perdas do início do século, manteve-se um bom controle de edifícios históricos até a criação do IPHAN. Criado na ditadura Vargas, o órgão em seu início era fortemente ideológico: reunia arquitetos comunistas e modernistas como Lúcio Costa, que traziam a mentalidade radical destes movimentos para dentro da preservação, desprezando tudo o que fosse antigo, o que encontrou terreno fértil no Brasil. Com uma leve adaptação da ideologia, elegeram que apenas um estilo arquitetônico (além do moderno, deles mesmos) deveria ser preservado no Brasil: o colonial. Assim, durante muitas décadas, qualquer edifício que não fosse desse estilo estava totalmente desprovido de proteção. Até a estação da Luz foi ameaçada de demolição por mais de uma vez, imaginem tal absurdo posto em prática. Com o boom de crescimento econômico e demográfico no pós-guerra, uma terceira corrente veio reforçar esse pensamento de que "o que é velho deve ser dispensado": as construtoras queriam os terrenos baratos, com casas pequenas, dos centros das cidades, e abriram campanha abertamente contra o tombamento financiando artigos em jornais, através de campanhas publicitárias, etc. O cenário desastroso estava formado: até o final da década de 70, o Brasil viu perdas irreparáveis, como a demolição do Palácio Monroe e do Parque Balneário Hotel, por exemplo. E isto se impregnou de tal forma no imaginário popular que ainda hoje não raramente vemos muitos repetindo coisas como "o tombamento engessa a cidade", "a propriedade privada é inviolável e o tombamento não deveria existir", etc. Ora, primeiramente: o tombamento NÃO tira o direito de propriedade! Apenas requer que, antes do proprietário fazer uma reforma no imóvel, a mesma seja avaliada por técnicos especialistas que vão garantir que as características principais não sejam destruídas. "Ah, mas se o proprietário não pode fazer o que quiser, tira sim" - mesmo se o tombamento não existisse, ninguém pode construir o que bem entenda. Em qualquer lugar existem regras definindo usos, número máximo de andares, recuos, etc. E as regras no Brasil são muito brandas quanto a isso, acreditem. Nos EUA, é comum por exemplo ter associações de bairro que fiscalizam se a grama do vizinho está cortada, e se não estiver paga-se multa. As regras urbanísticas são respeitadas e fiscalizadas pela própria população, ou vocês acham que vemos aquelas casas sem muros nos filmes por acaso? É lei. Em segundo lugar, vemos a afirmação que "existe muita coisa tombada, e muita coisa desnecessária". Será? As listas dos bens tombados estão disponíveis na internet. Desafio quem pensa assim a lê-las e enumerar quantos são "desnecessários" segundo sua opinião. Em números absolutos, o Brasil tomba muito pouco: somando tombamentos municipais, estaduais e federais, não devemos ter mais que 8 mil imóveis no país todo tombados. Apenas o USRHP, órgão de tombamento federal dos EUA, possui mais de 1 MILHÃO de registros de imóveis protegidos, sendo que apenas 80 mil são imóveis individuais (sendo o restante conjuntos, ou seja, duas ou mais edificações). Apesar de ser um país maior que o Brasil, devo lembrar que temos 150-200 anos a mais de história pós-colonização. Em terceiro, "engessa a cidade"? Ora, nenhuma capital de país desenvolvido no mundo ficou engessada por conta de tombamentos. Há 3 opções: constrói-se edifícios novos em bairros novos (caso de Docklands, em Londres, e da Faria Lima em São Paulo); constrói-se edifícios novos respeitando-se os antigos (caso de Tiradentes, Minas Gerais, e da maior parte do Leste Europeu); ou reutiliza-se edifícios antigos para outros fins. A visão sobre tombamento ainda é muito reduzida no Brasil. Não se enxerga possibilidades de oportunidades e lucros por parte dos proprietários com "coisa velha". Ninguém pensa em usar o tombamento a seu favor. Conheçam algumas exceções: A Casa Tombada, em São Paulo; o ex-comandante da VASP que adquiriu dois Boeings da empresa em leilão, os restaurou e hoje os aluga para eventos em Araraquara; Fazenda Boa Vita, em Bananal, transformada em hotel fazenda; Banespão, que ganhou diversos usos pelo seu atual proprietário, etc. (Em tempo: a grande maioria dos imóveis degradados no centro de São Paulo ou de Santos, por exemplo, já estava assim décadas antes do tombamento. Dentre as razões mais comuns, temos brigas judiciais por herança, desinteresse e invasões.) Infelizmente, o paulistano hoje não faz a menor ideia de sua história e de sua cultura, e grande parte disto é culpa desta mentalidade de ver tudo o que é "passado" como velho, desnecessário, antiquado e que merece ser apagado e substituído. Foto: Mansão Matarazzo, criminosamente demolida na década de 1990 e que deu lugar a um shopping que poderia ter sido feito em qualquer outro lugar.

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