O Cambista e sua Mulher (The Moneylender and his Wife) - Quentin Matsys
Museu do Louvre Paris
Óleo sobre madeira - 70x67 - 1514
O Cambista e sua Mulher é uma pintura a óleo sobre
madeira de 1514 pelo mestre flamengo da
Renascença Quentin
Matsys (1466-1530), medindo 71 cms de altura e
68 cms de
largura e que se encontra atualmente no Museu do Louvre, em Paris.
Sendo talvez a obra mais conhecida de Quentin Massys, O
cambista e a sua mulher é também uma das primeiras cenas
de quotidiano da história da arte. Está representado um
cambista na sua loja, ou oficina, a pesar moedas, tendo ao seu lado a esposa que parece
mais interessada no dinheiro do
que no livro de
oração que está a folhear.
A pintura parece querer representar subtilmente o conflito entre avareza e oração, correspondendo à
introdução na obra de Massys de uma nova nota satírica. O estilo é uma
reminiscência dos primitivos
flamengos, embora a figura humana tenha ganho monumentalidade.
Quentin Metsys parece ter voltado ao tema seis anos mais tarde com um quadro
com personagens grotescas intitulado Os Usurários.
A interpretação linear de que se trataria de
um duplo retrato parece de rejeitar. Mesmo que a comparação
com O
Casal Arnolfini, pintado por Jan van Eyck cerca de um século antes, seja tentadora, e
sendo certo que o género do retrato privado se difundiu a partir do século XV na
Europa, a falta de identificação precisa das duas figuras representadas, bem
como o tipo arcaico para a época das suas roupas deve levar a refutar essa
primeira hipótese de ter sido uma encomenda privada de um burguês.
O quadro poderia, por outro lado, evocar
uma cena do quotidiano,
representando uma atividade da vida diária num ambiente realista, ou seja, uma
operação de câmbio no escritório de um cambista de uma cidade comercial da
Flandres do Renascimento, como sugere o
título aceite pelo Louvre. Os numerosos detalhes realistas reminiscentes de um
universo familiar ao pintor flamengo, mestre na guilda de pintores de Antuérpia desde 1491, poderia
conduzir nessa direção.
Os inúmeros objetos compõem uma
autêntica natureza-morta, como o livro de iluminuras, jarras, ouro e joias, além do espelho que está em primeiro plano. O reflexo deste
permite ver algo que está fora da imagem visível diretamente no quadro. Este
detalhe, que exibe o virtuosismo do pintor, apareceu noutras pinturas flamengas anteriores, como O Casal Arnolfini (1434)
de Jan van Eyck, o Díptico
da Virgem com Maarten van Nieuwenhove (1487) de Hans Memling, e Um ourives na sua loja (1449) de Petrus Christus.
Se o quadro representa uma cena de interior, o espelho convexo colocado
sobre a mesa e voltado para a esquerda do espectador, reflete uma janela
dividida em cruz que se abre para o exterior. Os dois vitrais superiores têm no
centro duas cruzes de quatro lóbulos, uma vermelha e a outra azul. No painel
esquerdo inferior, há, elevando-se acima das árvores, a torre gótica de
uma Torre
sineira, elemento arquitetônico típico da Bélgica e do norte da França.
A forma esbelta deste último evoca também o campanário da Catedral de Antuérpia, mas sem se reportar a
ela exclusivamente.
A Flandres, e especialmente as cidades de Antuérpia e de Bruges, eram no início do
século XV importantes centros económicos, cruzamento comercial entre o Norte e
o Sul, onde se encontravam mercadores e banqueiros vindos de toda a Europa.
Esta atividade frenética de comércio levou ao desenvolvimento da atividade de
banqueiro e do câmbio das moedas de diferentes países.
À frente do homem, no canto inferior esquerdo
da pintura, encontram-se vários objetos representativos da sua atividade.
Notamos um taça facetada de cristal com embutidos de metal, uma
bolsa de pano preto aberta revelando pérolas, bem como um rolo de papel em que
estão enfiados quatro anéis com pedras preciosas, alternadamente vermelhas e
verdes. Estes objetos colocados sobre a mesa, ao lado de uma pilha de moedas de
ouro de diferentes proveniências sugerem a conversão deles em dinheiro vivo.
Em frente do homem está um amontoado de moedas de vários países e
épocas. Podem ser identificados, graças à perfeição realista do pintor, o
anverso de um Escudo
de ouro do Reino da França, moeda reconhecível pelo escudo
enquadrando três lírios e encimado por uma coroa e o anverso de um Augusto
de Frederico II, imperador alemão do século XIII.
Numa época em que a moeda
fiduciária ainda não estava difundida, e num contexto de
comércio internacional, o valor das moedas e o seu câmbio dependia do peso dos
metais preciosos nelas contido, principalmente de ouro. Assim, a sua circulação
não dependia nem do local de emissão, nem da época em que tinham sido cunhadas.
É ambígua natureza exata da operação
representada na pintura, o que levou à hesitação na atribuição do título à
obra, não permitindo a decisão a favor de uma outra atividade. O espelho
convexo, mostra claramente um cliente postado em frente da mesa, e cujo braço
descansa na borda da janela. Mas o que espera este precisamente? Veio trocar
valores (vaso, pérolas, anéis) por moedas que o comprador pesaria uma a uma, a
que está na balança, a que segura na mão e as duas sobre a mesa, uma sobre a
outra que estão mais perto do cliente? Ou, pelo contrário, é uma transação e um
movimento inversos, em que o cliente vem com as suas moedas, que colocou sobre
a mesa, e que o vendedor verifica uma por uma, antes de juntá-las à sua pilha?
Ainda assim, o centro de interesse do quadro, o que atrai os olhos dos três
personagens, é o ouro, fazendo quase esquecer que se trata apenas de um sexto da
superfície da obra.
A hipótese mais geralmente aceite sobre o
significado desta pintura é que se trata de uma obra alegórica e moralista
sobre o tema da vanitas dos bens
terrenos que se opõem aos valores cristãos intemporais, e uma denúncia da
avareza enquanto pecado capital.
A pintura joga com os efeitos de eco e
oposição entre o prestamista e sua esposa. Do ponto de vista da composição, a
pintura apresenta uma clara simetria entre o lado direito e o esquerdo,
inclinando o par os seus bustos um em relação ao outro de ambos os lados de um
eixo central vertical. Do ponto de vista da cor, o azul-cinzento do casaco do
homem, e o verde do boné, opõe-se ao vermelho do vestido da mulher. O mesmo
contraste de cores encontra-se, invertidos e em miniatura, nos motivos centrais
dos vitrais superiores da janela que se vê refletida no espelho em cima da
mesa. Mas o homem e a mulher condizem na riqueza das suas roupas e joias: gola
e mangas de pele de ambos, alfinete de ouro adornando o meio da coifa da
mulher, na sua testa, anéis, no indicador direito do homem, no mínimo direito
da mulher. As mãos também realizam gestos semelhantes: apertar os dedos da mão
esquerda, no ar, para segurar a balança no homem, e a página de um livro de
horas pela mulher; a mão direita descansando sobre a mesa, com uma moeda entre
o polegar e o indicador no homem, segurando o livro de Horas na mulher. No
entanto, a simetria é distorcida pelo fato de as mãos da mulher estarem
cruzadas, e não as do marido. Partindo das duas mãos esquerdas, há
correspondência de dois movimentos de rotação: o dos braços da balança em torno
do seu eixo, e o da página do livro sagrado, mantida no ar no momento da cena.
Os dois objetos que eles manipulam estão de
novo em oposição: de um lado a balança consubstancia o mundo material, o do
dinheiro e da avareza e, do outro, o Livro de Horas que tem uma iluminura da Virgem com o Menino (a
Virgem com um manto vermelho que faz eco do da mulher), e que evoca o mundo
espiritual e cristão. Na página esquerda do livro das horas, há um texto cuja
imagem inicial é a de um cordeiro, símbolo crístico do Apocalipse. Mas a
mulher afasta o olhar do livro sagrado, e deixa-se cativar pela balança,
atraída pelo ouro, como o seu marido, totalmente focado na sua pesagem. As
riquezas materiais desviam o sentido do mundo espiritual, e a balança toma um
valor alegórico, encarnando a pesagem das almas, antes do aceso ao Paraíso. A
moldura da pintura teve também, em latim, a seguinte citação bíblica,
acrescentada a posteriori e atualmente apagada: Statura
justa et aequa sint pondere ("Que a balança seja justa e os pesos
iguais").
Em fundo, na parede da sala, duas prateleiras
tratados como natureza morta estão
repletas de objetos cujo significado vai além do caráter casuístico e realista
revestindo um simbolismo cristão, codificado segundo a iconografia muito utilizada pelos primitivos flamengos,
particularmente após Jan van Eyck. Mais uma vez, o contraste entre os valores profanos
e sagrados, temporais e intemporais, entre o bem e o mal, parece prevalecer.
Na prateleira de baixo e na extremidade da esquerda, vemos uma caixa
fechada, símbolo da divindade oculta e, na extremidade oposta, uma vela
apagada, símbolo da vaidade e da morte.
Na prateleira de cima, há, da esquerda para a direita, uma garrafa de
vidro transparente cheia de água, símbolo tradicional da Imaculada
Conceição (a luz que passa pela garrafa e pela água sem se
corromper), e depois, dependurados em dois pregos no bordo da prateleira, um
rosário de seis esferas de vidro, símbolo da Virgem Maria, e uma segunda
balança evocando talvez o Juízo Final. À direita um
rolo de pergaminho e uma pequena placa de metal gravada por trás de uma maçã,
esta uma alusão tradicional do pecado original. Depois
maços de papéis e livros, num dos quais, coberto por rolo de pergaminho, o
artista colocou discretamente a sua assinatura.
Por fim, a pintura, embora representando uma
cena de interior, sugere várias fugas para o exterior, de acordo com um método
comum entre os pintores flamengos. No canto superior esquerdo, a luz ao passar
através da garrafa, é ao mesmo tempo refletida, como um espelho convexo, para a
janela de onde entrou. No canto superior direito, uma porta entreaberta abre-se
para a rua onde decorre uma pequena cena familiar, em que um homem aponta a um
outro o dedo indicador para o alto, como que a preveni-lo do perigo de entrar
naquele lugar. Por fim, o espelho convexo colocado no meio da mesa reflete a
área em frente e à esquerda da cena, ou seja, o cliente do prestamista, cujo
braço repousa casualmente no parapeito da janela, precisamente na base de uma
cruz que pode sugerir uma cruz cristã, mas que pode ser também o espectador,
ele próprio cliente em potencial e ameaçado pelos valores mundanos e a avareza.
No capítulo intitulado "Os herdeiros dos fundadores" do seu
livro Os Flamengos Primitivos, Erwin Panofsky considera “O
Cambista e sua Mulher” uma "reconstituição" de uma obra perdida
de Jan van
Eyck, uma pintura com figuras a meio corpo, representando um
comerciante a fazer as contas com o seu empregado, que Marcantonio Michiel
afirma ter visto na Casa Lampagnano de Milão. A justificação, além da
proximidade óbvia do tema de O Cambista e a esposa e a descrição da
obra perdida de van Eyck, são a roupa arcaica dos personagens bem como a
técnica utilizada por Metsys em 1514.
Para apoiar a sua hipótese, Panofsky compara esta pintura de Metsys com
outras pinturas de van Eyck. De facto, o interior faz lembrar o de São
Jerônimo no seu estudo (c. 1435, Detroit Institute of Arts, Detroit) de
van Eyck, com as prateleiras tratadas como natureza-morta, cheias de livros e
de objetos com características alegóricas (entre elas, um rosário de vidro, um
vaso cilíndrico cheio de água, uma maçã); a mesa sobre a qual S. Jeónimo se
apoia está coberta com um pano verde e também está repleta de objetos. Além
disso, Panofsky aproxima a coifa da mulher do prestamista da que está
no Retrato de Margaret Van Eyck (1439, Museu Groeninge, Bruges), para
justificar o carácter antiquado das roupas no quadro de Metsys.
Por fim, Panofsky considera o espelho convexo virado para a janela como
uma reformulação, não do Casal Arnolfini de van
Eyck, mas o de um retrato de um dos alunos deste, Petrus Christus, cujo tema
é realmente muito próximo, Ourives na sua oficina, talvez St.
Eloi (1449, Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque).
O quadro de Metsys é mostrado em primeiro plano no canto inferior
direito da pintura Apelles pintando Campaspede de Willem van Haecht representando a galeria
de Cornelis van der Geest, na década de 1630,
cerca de um século depois da obra de Metsys. Van der Geest era um grande
apreciador de Quentin Metsys e possuía várias das suas pinturas, incluindo
esta.
O quadro de Metsys foi por seu lado objeto de uma série de cópias. Nas
adaptações mais evidentes contam-se muitas versões de Marinus
van Reymerswaele, com o mesmo título, variantes e réplicas que se
encontram, entre outros, no Museu das Belas-Artes de Valenciennes, no Museu de Belas Artes de Nantes, no Museu do Prado em
Madrid, e na Antiga
Pinacoteca de Munique, etc..
O tema da pesagem de ouro numa balança teve um grande acolhimento entre
os pintores flamengos dos séculos XVI e XVII, em alegorias denunciando a
ganância, a avareza e a vanitas das riquezas terrestres, por
exemplo O Homem a pesar o ouro (1515–1520, Metropolitan Museum, New
York ) de Adriaen
Isenbrandt (1515-1520, Museu Metropolitano, New York), O
peso do ouro (1654, Museu Boijmans Van Beuningen, Rotterdam, Pays-Bas) de Solomon Koninck, O
peso do ouro (1664, Museu du Louvre, Paris) de Gerrit Dou, etc. Muito mais
original é o quadro Mulher segurando uma balança (c. 1665, Galeria Nacional
de Arte, Washington, EUA) de Johannes Vermeer, onde a
pesagem pela mulher, visivelmente grávida, parece sugerir a avaliação da alma
do bebé que vai nascer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário